Depois de muita pressão social nas ruas e nas redes, articulação política e um plebiscito popular realizado entre julho e setembro, a Câmara dos Deputados foi empurrada para a aprovação de uma das mais ambiciosas promessas de campanha do presidente Lula: a isenção de imposto de renda para pessoas que ganham até R$ 5 mil. A medida representa uma das mais significativas iniciativas já tomadas para a correção de um dos maiores problemas do Brasil: a profunda desigualdade na qual o país está mergulhado desde o período colonial.
Foi difícil, e o motivo é óbvio. Composto por empresários, com campanhas pagas por empresários, o Congresso Nacional representa e vota de acordo com interesses próprios.
“Esse é um grande problema para o governo Lula e para outros governos progressistas. É difícil mexer no andar de cima, fazer os super-ricos pagarem a conta, porque o Congresso Nacional não expressa a real correlação de forças, a real distribuição de renda na sociedade. A maioria da sociedade é trabalhadora e a maioria dos congressistas são empresários. Então, eles votam pelos próprios interesses. Eles blindam a si mesmos porque a aprovação de uma medida como essa é um recado: que quando a sociedade se mobiliza, se reúne, se agiganta, ela conquista vitórias. Por isso, o Congresso trabalha contra a participação popular e contra políticas que visam reduzir a desigualdade e a concentração de renda”.
A explicação é de Juliane Furno, uma das mais destacadas economistas brasileiras da geração millennial. Convidada do primeiro Soberania em Debate de outubro, a cientista social e econômica, mestra e doutora em desenvolvimento econômico, Juliane é professora na Escola de Formação Sindical da Central Única dos Trabalhadores, da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da Universidade Federal Fluminense. Na entrevista com a jornalista Beth Costa, Juliane falou sobre a importância das mudanças no imposto de renda que irão reduzir um pouco a diferença na balança tributária e dos muitos espaços onde ainda é necessário avançar na redução das desigualdades que castigam o povo brasileiro em detrimento de uma minúscula elite que se beneficia de um verdadeiro paraíso fiscal.
O mito da supertaxação brasileira
A desinformação é de longe um dos maiores desafios para aqueles que querem ver o país evoluir de um playground de meia dúzia de bilionários para um cenário mais igualitário e justo. A guerra de narrativas que vem marcando o início deste século constrói realidades que definem a opinião pública sem qualquer lastro na realidade. É assim que privilégios inimagináveis em outros países do mundo são, por aqui, defendidos ferozmente por uma massa de manobra de classe média.
A supertaxação é um desses mitos. Enraizado na visão de país de muitos, ele diz que, no Brasil, cobra-se muitos impostos e que é necessário reduzi-los. Mas basta olhar para fora para entender que a realidade está muito longe disso e que o problema está no desequilíbrio do que é cobrado de ricos, que pagam o mínimo, e pobres, que pagam as contas.
“O Brasil está exatamente na média de tributação sobre o PIB dos países da OCDE, os países mais desenvolvidos do capitalismo ocidental. Mas, se por um lado o Brasil está na mesma margem das experiências internacionais, por outro, ele taxa muito mal e fica longe das melhores práticas internacionais”, aponta Furno.
O problema está na ancoragem: cerca de 50% do que o Estado arrecada vem de tributos indiretos, que incidem sobre o consumo. É aí que a desigualdade se impõe. Ao adquirir um produto, quem ganha R$ 2 mil e quem ganha R$ 20 mil por mês pagam o mesmo valor em impostos que, dada a disparidade das rendas, vai pesar muito mais no bolso da maioria que ganha R$ 2 mil do que no daqueles poucos que ganham muito mais. É impossível equalizar o problema diretamente, caso a caso. A tributação indireta é, naturalmente, desigual.
Em todo o mundo, o caminho para a justiça tributária foi trilhado através da tributação direta. No Brasil, ela praticamente não existe em patamar adequado. Entre os tributos diretos estão o Imposto de Renda, o IPTU e a taxação sobre heranças. As alíquotas praticadas nesses casos são injustas, regressivas, diminuem na medida da riqueza de quem paga, não o inverso, que seria o mais justo, equivalente, razoável. Aqui, Furno faz uma distinção essencial: renda (fluxo mensal/anual) não é riqueza (estoque acumulado de patrimônio). Tributar riqueza é condição para reequilibrar o sistema.
O imposto sobre herança, entre 6% e 8% no Brasil, supera os 40% na França. O Imposto Territorial Rural (ITR), pago pelos oligarcas do agronegócio, é autodeclaratório. Apesar da facilidade da coleta de informações com satélites e cruzamento de dados de exportação, ainda é o dono que declara o quanto suas terras geraram de riqueza e produtividade. A arrecadação deveria ser grande, mas não é: equivale ao IPTU da cidade de São Paulo.

Um ajuste mínimo, um impacto enorme
Embora a oposição faça parecer que a proposta do governo Lula para dar um pequeno passo na direção da justiça social seja absurda, ela não chega perto de corrigir de fato a desigualdade. A nova alíquota progressiva de até 10% incide sobre rendas acima de R$ 50 mil quando há composição com renda de capital (lucros/dividendos, ganhos financeiros etc.). Apenas salário nessa faixa não é alcançado pela sobretaxa. O público afetado estimado por Furno é de cerca de 140 mil pessoas — “a população de um bairro” — enquanto os beneficiados diretos pela isenção são da ordem de 10 milhões.
Já para os mais pobres, que ganham até R$ 5 mil, a diferença é concreta. Serão cerca de R$ 300 por mês a mais no bolso. Em um cenário de inflação, aluguéis pressionados e transporte caro, essa melhora pesa. E há os efeitos indiretos: os R$ 300 serão gastos, gerando demanda; as empresas recompõem estoques e ampliam produção, contratam e reduzem o desemprego — o que tende a elevar salários reais.
No Brasil de hoje, um trabalhador que ganha R$ 6 mil ou R$ 10 mil ainda está muito longe do que é ser rico. Para eles, a injustiça tributária seguirá sendo realidade, continuarão pagando a conta. Corrigido o absurdo no Imposto de Renda para os mais pobres, o caminho lógico seria corrigir toda a tabela. E há um compromisso formal recém-aprovado: o governo deve apresentar, em até 1 ano, uma proposta de correção da tabela do IR pela inflação. O ideal é que, além da isenção até R$ 5 mil, a tabela inteira seja reescalonada, com novas faixas e alíquotas superiores aos atuais 27,5% para as rendas do topo (por exemplo, acima de R$ 1 milhão/mês), alinhando o Brasil às práticas internacionais.
Furno também desmonta a velha “teoria do gotejamento” (trickle-down): desonerar os mais ricos não garante investimento, emprego ou crescimento — ao contrário do prometido desde os anos 1980. E lembra que, na prática, o investimento privado acompanha o público: quando o Estado investe (infraestrutura, política industrial), o setor privado entra junto; nas crises, é o Estado que socorre bancos e grandes empresas. Resultado: sem Estado indutor, não há ciclo virtuoso.
Por fim, a agenda de médio prazo não é só tributária. Reforma política (para aproximar representação e sociedade), política industrial (reindustrialização com foco em transição energética), CT&I e transferência de renda compõem a plataforma de desenvolvimento sugerida por Furno — crescimento com desconcentração da renda e empregos de qualidade.
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O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra e redação de Rodrigo Mariano.
As entrevistas também podem ser assistidas pela TVT, Canal do Conde, e são transmitidas pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.