Marcia Tiburi: “O feminismo é a luta de classes em seu estágio mais avançado”

A programação especial do programa Soberania em Debate, do projeto SOS Brasil Soberano, para o Dia Internacional da Mulher contou com a filósofa, artista plástica e professora Marcia Tiburi para falar dos feminismos, das muitas violências físicas, psicológicas e simbólicas que o machismo e a misoginia ainda impõem, com reflexos que vão desde os costumes, passando pelo mercado de trabalho e pelas relações, alcançando seu ápice na interdição do direito da mulher sobre seu próprio corpo. 

A teoria defendida por Tiburi, que retornou da Europa em julho de 2023, após exílio de quatro anos imposto por ameaças à sua vida, é a de que o machismo é derivado do capitalismo, assim como o fascismo. O feminismo, neste cenário, se apresenta como a luta de classes em seu estágio mais avançado, em toda a história humana. Afasta-se, assim, do olhar equivocado que trata as pautas dos movimentos de mulheres como “identitárias”. 

“A luta das mulheres é muito mais ampla que o que o termo feminismo trouxe para nós. O feminismo é a luta contra o patriarcado, o capitalismo, o fascismo. E é por entender isso que entro sempre em rota de colisão com aqueles que, não estudando os assuntos que vão abordar, usam termos horrorosos como “identitarismo”, algo típico de gente ignorante. É um esforço feminista, também, buscar ser pedagógica, didática, porque faz parte do jogo estar na luta epistemológica para que consigamos sair das trevas da ignorância machista”, defende Marcia.

Na hierarquia cristalizada estruturalmente por privilégios e preconceitos desenhados pelo machismo, Marcia destaca recortes e evidencia que o ser mulher conta sempre como um agravante, independente do recorte racial, sexual ou econômico. 

“A sociedade é feita para os homens. É claro que se você carrega um marcador racial, não tem um dos privilégios mais evidentes. A classe social também pode subtrair privilégios ao pensar a relação entre homens e mulheres. Mas em todos esses casos, ser mulher será definitivo e a mulheres pretas estarão na base da pirâmide. Até porque, elas tendem a ser pobres. Ângela Davis fala sobre como o sistema vai enviando a mulher, através das classes sociais, para baixo. Se você é preta, será jogada para baixo. Se for pobre, também. São interseccionalidades importantes, porque as relações de poder são econômicas, mas são também raciais e de gênero. Não tem como separar essas coisas porque as violências que elas produzem estão misturadas”, aponta Tiburi.

Por uma educação feminista

O Brasil registrou 1.436 feminicídios em 2023, um triste recorde desde a criação da Lei Maria da Penha, em 2015: uma mulher é assassinada no Brasil, por ser mulher, a cada seis horas. Os números refletem os anos de governo Bolsonaro, que optou por não utilizar as verbas destinadas às políticas de proteção das mulheres e reforçou, sempre que possível, o traço profundamente machista que norteava seu projeto de poder. “A própria Damares Alvez tinha como função ser uma mulher trabalhando pela destruição dos direitos das mulheres. É muito perverso”, comenta a professora.

Foto: Fábio Rodrigues-Pozzebom/Agência Brasil

Tiburi aponta dois fatos que são determinantes para pensar os caminhos do feminismo hoje. O primeiro deles, positivo, é que, diferente de um passado recente, há denúncias. Por outro lado, atravessamos momento em que o patriarcado mostra sua face mais feroz, construindo relações baseadas na violência que vão sendo naturalizadas. 

“Todos conhecemos mulheres que foram assassinadas por seus maridos, nas mais diferentes classes sociais, e ficou por isso mesmo. Os casos passavam como suicídios. As mulheres ‘suicidadas’ eram bastante comuns antigamente. Até bem pouco tempo a defesa da honra era motivo plausível na argumentação delirante do patriarcado. Já não é mais. Por outro lado, já escutamos por aí que o feminicídio está ‘na moda’. As mortes são cada vez mais perversas, como o caso do marido que foi encontrado com o coração da esposa na mão. Há uma perversão a mais nesse processo e isso precisa ser enfrentado. O patriarcado estabelece um conluio entre homens para naturalizar esses crimes até que se tornem ‘concessões públicas’. É como a lógica do linchamento, onde todos os que participam se protegem. A branquitude também tem os seus conluios. O mesmo acontece com a burguesia. É assim que os sistemas de opressão funcionam”, explica Tiburi.        

Para combater o machismo, Marcia aponta a importância de uma educação feminista desde a primeira infância. Contrária ao que chama de “feminismo abstrato”, ela defende uma atuação cotidiana capaz de enfrentar a misoginia que está na base das classes sociais, da religião, da comunicação. Para isso, Marcia defende escolas com programas transversais que tratem da misoginia em seus conteúdos e programas de governo que mobilizem a sociedade em torno do debate. 

“Precisamos pensar mais em termos de reconciliação de diferenças. Da tecnologia com a natureza, das religiões com as sexualidades e gêneros. Podemos produzir essa abertura para o outro com base na escuta. A prática de escutar o outro para pensar em mim é bastante comum entre as feministas. Esse cuidado na escuta é uma categoria do mundo feminino, responsável pelas muitas descobertas que fazemos juntas, umas com as outras. Se não fizermos esse exercício de atenção e cuidado, de escutar o outro, talvez não seja possível avançar. É preciso colocar boa intenção no processo, mas ela está em falta entre os homens. Tem que começar em casa, pelas tarefas domésticas, pelo cuidado com os filhos. Se os homens pararem para pensar e escutar sobre o que é ser marido, acho que a gente avança”, finaliza.

 

Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ
Foto em destaque: Mídia Ninja/Flickr

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