Marielle, o enfrentamento às milícias e a justiça plena, ainda por vir

"As investigações não estão terminadas. A milícia não pode ser tolerada e essa é uma chance única. Precisamos destruí-la por tudo que Marielle representa”, defende Monica Benicio, no Soberania em Debate

“Todo brasileiro que defende a democracia precisa estar preocupado com a produção de políticas públicas para o combate às milícias e sua expansão. Mais de 50% dos territórios do Rio de Janeiro são dominados por elas. E depois de conquistarem os territórios, elas encontraram espaço na política institucional. Agora elas são o Estado e estão expandindo para outros territórios do Brasil. As milícias precisam ser combatidas, paralisadas e destruídas no Brasil, ou nunca conseguiremos avançar com o Estado democrático de direito”. O alerta é de Monica Benicio, vereadora do município do Rio de Janeiro e viúva de Marielle Franco.

O combate ao poder paralelo na cidade e a segurança pública, sobretudo para aqueles que menos têm acesso a ela, sempre foram bandeiras defendidas pela arquiteta urbanista e pelo seu mandato. Desde o anúncio dos mandantes do assassinato de sua esposa, porém, esse enfrentamento se intensificou. Para além da confirmação da ligação da execução à luta de Marielle pela regularização fundiária e direito à moradia, a prisão dos mandantes abre uma janela de oportunidade única.

A prisão dos irmãos Domingos e Chiquinho Brazão e do delegado da Polícia Civil, Rivaldo Barbosa – que assumiu o cargo um dia antes do crime – expôs o ecossistema criminoso que se apoderou do parlamento, secretarias e dos tribunais de contas. “O que temos agora é uma oportunidade, por mais que me desagrade usar essa palavra para qualificar este momento, que não pode ser perdida porque é possível que nunca mais aconteça na história do município, do estado e do país. Agora, quando conseguimos olhar para este submundo do Rio, permeado de corrupção na política institucional, temos a obrigação, o compromisso de afirmar que a violência não pode ser uma ferramenta para a construção da sociedade. Por memória, verdade, justiça e reparação, precisamos mostrar que a morte e, principalmente, a vida de Marielle não foi em vão”, conclama Monica.

Entrevistada do Soberania em Debate de 04 de abril, Monica falou sobre a militância, atuação na política institucional, resultados eleitorais e desempenho parlamentar de Marielle, que despontava como forte promessa para a esquerda carioca, rompendo tabus que mantinham pessoas negras, LGBTs e oriundas das favelas longe dos centros de poder na cidade. Sobre os que achavam que conseguiriam interromper a trajetória de Marielle com a sua morte, Monica destaca o fracasso: “O rosto de Marielle está estampado em muros no mundo todo, em países onde ela jamais pensou em pisar”.

Marielle não recua

A história da vereadora executada na volta para casa após cumprir agenda de mandato ganhou o mundo. Marielle representava muito pelo que vinha construindo e pelo que era. Fosse pela longa atuação na militância pelos Direitos Humanos, fosse pela sua atuação parlamentar, ela era considerada uma figura em ascensão na política institucional. 

Os números reforçaram – e superaram – as previsões dos especialistas de campanhas: Em 2016, a estimativa era que Marielle fosse muito bem votada, alcançando cerca de 15 mil votos. Ao final da apuração, ela havia conquistado 45.5 mil eleitores.

Acontece que a campanha da mulher negra, favelada, LGBT, que havia sido mãe muito jovem e parado de estudar para cuidar da filha, tomou corpo, encantando a militância como uma alternativa viável para romper a resistência e colocar aquele corpo divergente em uma arena criada e mantida por homens brancos, conservadores, na prática de uma política envelhecida. “Sua trajetória é refletida, naquele momento da sua eleição, pela pulsão de urgência que a cidade sentia em mudar a cara da sua política”, aponta Monica. 

Uma vez no parlamento, a trajetória seguiu ascendente. “Com um ano e três meses de mandato, Marielle tinha uma rejeição muito baixa. Era uma figura muito querida dentro e fora da institucionalidade. Os algozes dela não conseguiram enxergar isso. Viam o tamanho do problema que ela poderia se tornar, mas não sabiam do tamanho do que já havia sido conquistado”, conta. Vem daí, segundo Monica, a proporção que o nome e legado de sua companheira de vida tomou no Brasil e no mundo. 

“Não há nada mais assustador para essa política envelhecida, que não representa a maioria, que um povo com esperança e vontade de mudar esse cenário. A parlamentar negra, que vem da favela e diz isso de forma positiva, que é LGBT, subverte essa lógica e muitos passam a se ver representados no corpo e na trajetória dela. E, por isso, têm esperança. Todos os que tinham algum ponto de interseção com algo que Marielle representava, fazia ou era, perderam uma Marielle e essa dor se torna coletiva, incomum na sociedade, fazendo a luta tomar a proporção que tomou”, analisa Monica.

Agora um símbolo mundial de luta, Marielle abriu e segue abrindo caminhos. “O recado político do assassinato de Marielle era o silenciamento. Que o que ela representava não era bem-visto na política. Mas a resposta foi na contramão disso. Tivemos a entrada de mais mulheres negras na política, tivemos uma virada importante, tanto para a população negra, quanto para LGBTs. As lutas que Marielle encampou não foram silenciadas com a violência. Pelo contrário: a sociedade disse que não aceitaria a violência e a barbárie como método de fazer política. A sociedade avança com as pautas que Marielle representava. Não recua, como desejavam os que a assassinaram”, aponta Monica.

Um caso em aberto

Monica acompanhou de perto a investigação que, agora sabemos, já iniciou contaminada pela ação de Rivaldo Barbosa. Embora o momento seja importante, Monica destaca que a conclusão do caso está longe de acontecer. 

“Foram seis anos e dez dias para chegar o telefonema da Polícia Federal avisando que os mandantes do crime foram presos. É um momento importante. O debate sobre a defesa da democracia passa por essas elucidações. Foi preciso a mudança de todo o cenário político do país, o comprometimento do governo, através do então ministro Flávio Dino e a entrada da Polícia Federal nas investigações para chegarmos aos nomes dos mandantes e motivações. Mas, até agora, falamos só do primeiro ano de investigação do crime. As investigações não foram finalizadas. Queremos saber o que mais, quem e como estão envolvidos. Todos os que tiveram algum envolvimento com o crime devem ser punidos no rigor da lei”, defende Monica. Com cerca de 50% de seus parlamentares ligados às milícias, o seguimento da investigação no município do Rio, não deverá ser fácil. Para organizar a pressão social dos que querem a justiça completa, Monica criou a campanha “Com Milícia Não Tem Jogo” e vem reunindo apoios de peso para a luta contra o poder paralelo no Rio.

Mais que medidas e políticas públicas na área da segurança, Monica destaca o enfrentamento político necessário para eliminar de vez o cenário que faz nascer os grupos paramilitares em favelas e periferias, onde o Estado não se faz presente. “Enquanto a gente tiver uma sociedade na qual o Poder Público não interfere diretamente para diminuir as desigualdades e opressões, teremos grupos que encontrarão meios de se beneficiarem com a tragédia, a pobreza e a miséria. É preciso um projeto de sociedade com Estado soberano, que garanta cultura, lazer, educação e saúde de qualidade para todos os espaços e territórios da cidade”, finaliza Monica.

O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.


Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ

Foto: Reprodução

 

Pular para o conteúdo