Memória e lutas se encontram na celebração dos 50 anos dos Cadernos do Terceiro Mundo

Conferência organizada pela UFRJ, UERJ, UFRRJ e UFF debate o legado do projeto editorial que se consolidou na criação de uma potente mídia alternativa contra-hegemônica do sul global

Com uma história única, os Cadernos do Terceiro Mundo nasceram do encontro intelectual de lideranças sindicais, professores, políticos, jornalistas, estudantes e militantes exilados pelo ciclo de ditaduras instalado na América Latina nas décadas de 50, 60 e 70. A redação, profundamente latino-americana, passou pelo México, Lisboa e, após a anistia em 1979, chegou ao Brasil. Naquela altura, as revistas já eram impressas e levavam um olhar de esquerda, social, fraterno e soberano para a Europa, EUA, África, Oriente Médio e Ásia.

Essa trajetória pioneira, que marcou a história do jornalismo e da comunicação na América Latina, está sendo celebrada pela academia e pelas forças progressistas que, tantos anos depois, se encontram novamente na linha de frente da defesa da democracia. Entre 29 de outubro e 1º de novembro, profissionais, pesquisadores e estudantes de diversas áreas se reúnem para debater a iniciativa, revisitar suas abordagens e honrar seu legado para a comunicação do sul global. Em debates, mesas redondas e exposições, o evento celebra a memória da parcela do mundo que, sob o julgo imperialista do norte global, ocupa a eterna periferia, incluindo seus movimentos sociais, sindicatos e grupos de resistência que ousaram sonhar com liberdade e soberania no arranjo geopolítico.

Organizado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e Universidade Federal Fluminense (UFF), com apoio do Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ, Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da UFRJ, e da CAPES, o evento teve uma mesa de abertura permeada pela admiração ao projeto e sua importância na consolidação do jornalismo como ferramenta de luta anti-imperialista e anticolonialista.

O presidente do Senge RJ, Olímpio Alves dos Santos, e o presidente do Conselho da Associação Brasileira de Imprensa, Marcos Gomes, representaram entidades da sociedade civil organizada que dedicam sua história à democracia, à luta anti-neoliberal e à informação responsável, livre e independente. Ao lado deles estavam representantes das universidades públicas que, ao longo deste meio século, tiveram suas histórias entrelaçadas com o projeto.

Representando toda a equipe que, em diferentes países, integrou a revista, a jornalista, cientista política e historiadora uruguaia naturalizada brasileira Beatriz Bissio, hoje professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), também participou da abertura. Fundadora e editora do projeto, ela foi convidada a coordenar a conferência, que recebe convidados do Brasil e do exterior das áreas de jornalismo, história e relações internacionais. Após quase 20 anos da publicação da última edição dos Cadernos, Bissio lembrou o passado, mas sinalizou que foi pensando no futuro que organizou o evento.

“Me comove muito dividir essa abertura com representantes de tantas universidades, bem como de instituições tão importantes como a ABI e um sindicato tão combativo como o Sindicato dos Engenheiros. Mas também por saber que a alma deste evento são os jovens. Isso significa que estamos conseguindo transmitir às novas gerações algo do espírito que nos guiou,” declarou a professora.

Bissio lembrou uma geração que viveu momentos desafiadores quando, em efeito dominó, as democracias latino-americanas foram derrubadas, uma a uma. O sinal estava fechado para aqueles jovens dos anos 1970, mas havia utopia. Enquanto as ditaduras se consolidavam, sanguinárias e autoritárias, crescia a rebeldia e a certeza de que aquele período seria superado e que eles poderiam oferecer para as gerações seguintes um mundo mais democrático, fraterno e livre da exploração e do poder financeiro como governança global.

“Estou muito honrada de ter aqui representantes de tantas universidades públicas do Rio de Janeiro e de constatar que, apesar das instabilidades, ainda temos este espaço democrático para discutir esses temas. Há países onde isto não é possível, onde universidades sofrem censura explícita ou implícita. Esta mesa de abertura nos mostra o quanto temos a contribuir, como poder público e universidades públicas, com aqueles que anseiam pela construção de um mundo melhor”, declarou a professora.

Legado de resistência e informação livre

Os Cadernos do Terceiro Mundo nasceram em tempos difíceis para as terras e povos que lhes dão o nome. Suas pautas refletiam as lutas dos povos submetidos ao domínio europeu e norte-americano. Estamparam suas capas as guerras de libertação africanas em Angola e Moçambique e a reconstrução nacional após a independência; o apartheid na África do Sul e a luta de Nelson Mandela; a segregação racial e o movimento global contra a discriminação; a guerra de libertação do Timor Leste e os abusos e genocídios sofridos pela população timorense durante a ocupação indonésia; os conflitos no Oriente Médio, ainda tão atuais, e, principalmente, a resistência latino-americana às ditaduras militares nos anos 70 e 80.

Em uma época sem internet, os Cadernos do Terceiro Mundo foram um guia para entender as complexidades de um mundo em ebulição. “O jornalismo era, então, marcado por um compromisso rigoroso com a verdade. Fake news não nos preocupavam; praticamente nem existiam. Mesmo jornais claramente comprometidos com partidos de direita ou esquerda não distorciam a realidade. Os Cadernos do Terceiro Mundo tomavam partido: o do Sul Global, cobrindo com objetividade as questões que impactaram os países da América Latina, África e Oriente Médio. Essa abordagem, ainda hoje, mantém sua importância e atualidade, um ideal a ser revivido e reinventado”, destacou a professora Ana Célia Castro, diretora do Colégio de Altos Estudos da UFRJ.

Olímpio Alves dos Santos, presidente do Senge RJ, destacou o papel da revista na formação de uma geração: “Sinto-me honrado por estar nesta mesa, ao lado de tantos acadêmicos, pois os Cadernos do Terceiro Mundo foram fundamentais na minha formação. Minha irmã era historiadora e lia a revista. Foi assim que ela chegou até mim e me ajudou a compreender o mundo e o meu lugar nele”.

A professora Mônica Leite Lessa, diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ, ressaltou o pioneirismo dos Cadernos ao dar voz ao terceiro mundo e inovar nas abordagens da geopolítica, antes mesmo de a ONU pautar o direito humano à comunicação.

“Os Cadernos do Terceiro Mundo antecederam a proposta de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação, a NOMIC, apresentada pela ala do terceiro mundo na ONU em 1977. A revista é de 1974. Concluída em 1980 pela Comissão Internacional para o Estudo de Problemas da Comunicação, a NOMIC reuniu um grupo de 16 especialistas, com apenas dois latino-americanos: Gabriel Garcia Márquez, pela Colômbia, e o chileno Juan Somavia. Embora a NOMIC não tenha alcançado plenamente seus objetivos de democratização e comunicação da informação, teve enorme impacto nos estudos de comunicação. Já os Cadernos do Terceiro Mundo avançaram significativamente neste sentido. Suas matérias não apenas encarnaram a luta pela democratização da informação e comunicação, como também ecoaram um movimento de lutas anticoloniais do século passado”, destacou Lessa.

Mônica também ressaltou a relevância da revista para a academia em diferentes áreas, uma relação que se consolidou e permaneceu mesmo após o encerramento das publicações: “A parceria entre as nossas universidades, aqui reunidas, é uma afirmação do nosso papel político e social enquanto universidade. É, também, o reconhecimento da relevância dessa publicação, que inovou ao abordar a relação entre política, mídia, contexto internacional e o chamado terceiro mundo”, destacou.

A professora lembrou das parcerias do Laboratório de Pesquisa e Políticas de Ensino em História – LPPE UERJ com a professora Beatriz Bissio e outras universidades para digitalizar e indexar 485 edições dos Cadernos do Terceiro Mundo. “Em 2000, o acervo material da revista foi doado ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro. Em 2009, o Laboratório de Pesquisa e Práticas de Ensino lançou um CD-ROM com a versão digitalizada desse acervo. Esse é o papel do Estado e das universidades em grandes projetos”, apontou.

Mais atuais e necessários do que nunca

Não foi apenas a fala de Beatriz Bissio que apontou a retomada do projeto e sua centralidade em debates fundamentais ainda hoje.

Segundo Olímpio, a conjuntura de um mundo que agoniza apresenta uma clara missão: “Estávamos [nas décadas em que a revista era publicada] em um mundo em ebulição, com lutas anticoloniais que continuam. O mundo de hoje também está em ebulição, talvez de forma ainda mais profunda. Faz muita falta um projeto como os Cadernos do Terceiro Mundo para nos guiar na luta contra o fascismo, na construção de um mundo multipolar e na libertação do imperialismo. Creio que vocês têm essa missão: com novas mídias e linguagens, voltar a editar os cadernos para que eles cheguem aos jovens que hoje se informam, muitas vezes mal, pelas redes sociais”, defendeu o sindicalista.

A professora Ana Célia Castro reforçou o apelo, apontando que um ciclo iniciado há meio século ainda permanece aberto: “Não se trata de reviver o passado, mas de encarar um presente que reitera grandes conflitos não resolvidos. É evidente que novos atores do sul global, como Índia e China, tornaram-se fundamentais. Questões como mudanças climáticas ganharam importância verdadeiramente crítica, enquanto a polarização política e a ascensão da nova direita desafiam a sobrevivência da democracia. O espelho do futuro, que reflete essa realidade traumática dos dias de hoje, teria o poder de antecipar e prevenir o que parece inevitável? Poderia o espelho do passado evitar um futuro indesejado? Sigo na esperança de que novos cadernos surjam para enfrentá-lo. Quem sabe, os Cadernos do Sul Global”, finalizou.

Também participaram da mesa de abertura a vice-reitora, no exercício da reitoria da UFRJ, Cássia Turci; Roberto de Souza Rodrigues, reitor da UFRRJ; e Flávia Clemente, diretora do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UERJ.

Acompanhe as mesas

Os debates, que acontecem até o dia 1º de novembro, são abertos ao público, no Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ (CBAE – UFRJ), que fica na Av. Rui Barbosa, 762, Flamengo.

Toda a programação está sendo transmitida ao vivo e pode ser acompanhada ou reassistida pelo YouTube. Confira:

DIA 29 DE OUTUBRO
Abertura – autoridades Institucionais

Por que Cadernos do Terceiro Mundo?

DIA 30 DE OUTUBRO
Cadernos do Terceiro Mundo e o contexto Mundial

Cadernos: Redação e Produção Editorial

O papel da Cadernos na cobertura internacional

DIA 31 DE OUTUBRO
Jornalismo e mídia ontem e hoje

Mesa Discente: A Cadernos do Terceiro Mundo como fonte histórica

Do terceiro mundo ao sul global: mudanças geopolíticas e o papel da comunicação

DIA 1 DE NOVEMBRO
Bandung 1995 – Rio de Janeiro 2024 – Bandung 2025 – O legado de Bandung e os desafios para o sul global

 

Rodrigo Mariano/Senge RJ | Imagens: Cadernos do Terceiro Mundo/Divulgação

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