Mitos idealistas: Batalha dos Guararapes e tutela militar

É impossível que o Exército brasileiro tenha sido constituído nas batalhas dos Guararapes, na medida em que sequer existia um Estado brasileiro

Por Jorge Folena*

Existem muitos mitos na história do país, entre eles o da fundação do Exército no Brasil, que precisam ser esclarecidos, pois induzem a uma suposta superioridade da instituição em relação ao povo, que é a essência do Estado brasileiro.

Os artífices da mistificação partem das ideias contidas na Filosofia do Direito, de Hegel, que considera que a livre manifestação de vontade individual forma a família, que dá origem à sociedade civil burguesa, que, por sua vez, forma o Estado.

No prosseguimento dessa construção hegeliana, o Estado não é controlado pelo povo (que por meio da sua vontade o constituiu), mas por uma monarquia constitucional, que se posiciona acima da população e se respalda na força militar, para manter-se no poder e controlar a soberania nacional, que, nessa visão, é de conteúdo institucional e não popular.

Essa construção existe para garantir o sistema de proteção da propriedade particular e a troca mútua de interesses privilegiados, pela qual se permite que o monarca exerça o poder do Estado para garantir a segurança da propriedade individual, desde que o faça utilizando a força militar (que se posiciona como uma linha média de estamento), que, por sua vez, recebe em troca vantagens especiais e diferenciadas em relação aos demais integrantes da sociedade.

Por esta concepção, o que se defende, ao final, são os interesses de grupos particulares, existentes dentro de um Estado formal; ao contrário do que se espera, não se defende a pátria (conjunto da população e das riquezas coletivas, submetidas ao Estado).

As ideias expostas até aqui nos permitem examinar com propriedade a manifestação de Aldo Rebelo, quando Ministro da Defesa do governo Dilma Rousseff, em discurso de 19/04/2016, em que homenageou a fundação do Exército brasileiro de modo a agradar os militares:

“Na data de hoje, o Brasil comemora o aniversário da Primeira Batalha dos Guararapes – episódio fundador de nossa nacionalidade. A vitória no campo dos Guararapes, em Pernambuco, em 1648, definiu o triunfo sobre o invasor holandês e, acima de tudo, o destino e o futuro do Brasil. Nas palavras de Gilberto Freyre, quando a Batalha completava 300 anos, em 1948: ‘Nas duas batalhas dos Guararapes escreveu-se a sangue o endereço do Brasil: o de ser um Brasil só e não dois ou três. O de ser um Brasil fraternalmente mestiço, na raça e na cultura.

(…)

As três etnias que formaram a miscigenação nacional a partir de Guararapes são representadas pelas figuras dos três líderes da Batalha: o índio potiguar Filipe Camarão, que comandou o destacamento indígena; o negro Henrique Dias, filho de escravos africanos libertos, que comandou o destacamento negro; e o mazombo André Vidal de Negreiros, que comandou o destacamento de mestiços e brancos. O Brasil herdou a grandeza desses antepassados e precisa consolidar uma Política de Defesa compatível com essa grandeza, tanto em relação ao aspecto espiritual, forjado na abnegação e no patriotismo que guiaram a vida dos heróis de Guararapes, quanto em relação ao destino geopolítico do País.”

Ao nosso ver, o racionalismo incontido omitiu que, entre 1647 e 1650 (período das duas batalhas dos Guararapes, travadas entre Portugal e Holanda), o Governador Geral do Brasil era Antonio Teles de Meneses (Primeiro Conde da Vila Pouca), pois o Brasil era à época uma colônia portuguesa, que, em 1640, passou a ter alguns governadores gerais, agraciados com o título de vice-reis.

Como se pode verificar, é impossível que o Exército brasileiro (como instituição) tenha sido constituído nas batalhas dos Guararapes (1648 e 1649), na medida em que sequer existia um Estado brasileiro, não existindo, muito menos, um povo brasileiro, em sua essência, naquele período. Ademais, uma instituição burocrática, por mais importante que seja, não tem o poder de fundar uma sociedade e muito menos um Estado; pois, sem qualquer dúvida, a instituição apenas integra o Estado e não pode estar acima dele.

Neste ponto, a partir do momento em que se entende que o Estado é constituído pela sociedade, ofende a lógica afirmar que a sociedade seja constituída pelas instituições. Da confusão desses termos surge um grave problema interpretativo, que faz com que, da fundação da República (1889) até hoje, alguns militares se achem no direito de estar à frente da população, acreditando-se os mais capacitados, por suas armas, para superar as crises políticas e sociais, mediante a imposição de uma tutela que despersonaliza a vontade da população.

Com efeito, essa construção espiritual que sugere a formação de um Exército brasileiro em 1648/1649, quando o Brasil sequer existia (tendo os portugueses cooptado índios e negros para lutarem ao seu lado contra os holandeses), é utilizada com a finalidade de garantir uma ordem tutelar muito próxima da filosofia do direito hegeliana, que foi construída para justificar o poder do monarca.

Portanto, trata-se de uma tutela para fins de “interesses singulares”, e não coletivos, que, por isso, não se coaduna com a defesa permanente da pátria, cuja essência é o povo e as riquezas coletivas da sociedade. Assim, é equivocada a atuação de forças militares que se restringem à proteção de interesses privados; e seus integrantes não podem manifestar nem impor seu pensamento como se fossem ordens oficiais para cumprimento por toda a sociedade.

Por fim, vale registrar que, em razão das batalhas de Guararapes, Portugal perdeu para a Holanda os territórios do atual Sri Lanka (antes Ceilão) e Indonésia (antes Ilhas Molucas) e teve que indenizar a Holanda em mais de 63 toneladas de ouro, conforme convencionado no Tratado de Paz, firmado em Haia, em 1661.

 



* Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ, Jorge também coordena e apresenta o programa Soberania em Debate, do movimento SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

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