Fonte: Brasil de Fato
“A mudança de paradigma é que a moradia se transformou em um setor econômico, mais do que numa política social. Passa-se a enxergar o setor da produção residencial como uma das novas fronteiras de expansão do capital financeiro”, explica a arquiteta e ex-relatora da ONU para o Direito à Moradia Adequada, Raquel Rolnik.
Raquel Rolnik é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Foi relatora especial do Conselho de Direitos Humanos da ONU para o Direito à Moradia Adequada, por dois mandatos (2008-2011, 2011-2014). Também atuou como diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo, coordenadora de Urbanismo do Instituto Pólis e secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades.
Em entrevista ao Brasil de Fato e aos Jornalistas Livres, durante sua participação no Circo da Democracia, Rolnik fala sobre a financeirização a partir das transformações nas políticas habitacionais em diversas partes do mundo, tema de seu novo livro “Guerra dos Lugares”, recém-lançado em Curitiba.
No Brasil, segundo a ex-relatora da ONU, essa mudança de paradigma acontece com forte liderança e subsídio do Estado, inclusive avançando sobre os fundos públicos dos trabalhadores para o financiamento de grandes obras, como é o caso do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro, que teve maciça injeção de recursos do FGTS.
O elemento fundamental desse processo, de acordo com ela, é a oferta de acesso de compra via crédito para a casa própria aos mais pobres. “Há um paradoxo na ‘era Lula’. Ao mesmo tempo em que se ensaia talvez pela primeira vez a implantação de um Estado de bem-estar social com a expansão das políticas públicas e de uma rede de proteção social, ela se dá através de um modelo que traz consigo toda a lógica da financeirização”, lamenta Rolnik, sinalizando também as ameaças e perigos da atual conjuntura para a o direito à moradia e à cidade.
Confira a entrevista.
Brasil de Fato- Seu livro mais recente, “Guerra dos Lugares”, fala sobre o impacto da financeirização nas políticas públicas de vários países pelos quais você passou durante dois mandatos consecutivos como relatora especial da ONU. Em primeiro lugar, o que devemos entender por financeirização, neste contexto?
Raquel Rolnik- Meu mandato na ONU começou em 2008 e, imediatamente, estourou a crise financeira e hipotecária nos Estados Unidos, que gerou um efeito dominó em vários países. E os primeiros relatos que chegaram até mim, com denuncias de violações de direitos, eram sobre os atingidos por esta crise. Eu precisei começar a entender o que estava se passando no mundo, para além de verificar a situação das famílias e a vulnerabilidade em que se encontravam. Precisei compreender a conexão entre o que essas famílias estavam vivendo e a crise financeira.
O que aconteceu nos EUA também aconteceu na Espanha, na Irlanda e no Casaquistão, por exemplo. Quando cheguei no Casaquistão, me deparei com uma greve de fome de pessoas sem casa, que não tinham nada. Começamos a entender que isso não aconteceu só nos Estados Unidos, mas fazia parte de um processo global. A entrada da minha pesquisa sobre a financeirização foi por aí, via o processo de transformação das políticas habitacionais no planeta, que possui diferentes versões.
A mudança de paradigma é que a moradia se transformou em um setor econômico. Passa-se a enxergar a produção residencial como uma das novas fronteiras de expansão do capital financeiro, com um papel de destaque para o crédito hipotecário. Mas eu diria que entre o credito hipotecário dos EUA e dos países europeus e o microcrédto da favela, que é outro extremo, nos deparamos com uma enorme variação de formas e modelos.
O elemento fundamental, porém, não é o acesso à habitação via crédito para a casa própria – isso já acontece pelo menos desde os anos 30 nos EUA -, mas é que esse mercado se expande na direção dos mais pobres. A moradia se transforma em sinônimo de mercadoria e de ativo financeiro, deixando de ser algo historicamente definido como politica social, numa perspectiva de universalização, assim com ocorre com a educação e com a saúde.
Mas então, em que essa fase do capitalismo se difere das anteriores?
Essa é a fase da hegemonia da lógica financeira na definição do destino das cidades: do que, de onde e de como será produzido, única e exclusivamente pautando-se na lógica do fluxo de rentabilidade futura. Ela é muito diferente do fordismo e da era industrial, em que as perguntas eram ‘como expandir mercado?’, ‘como produzir mais’? e ‘como vender mais?’. A pergunta fundamental agora é onde posso investir capital excedente global, que é fruto da mais valia global e que fica pairando sobre o planeta, procurando permanentemente oportunidades que permitam que ele seja remunerado através dos juros. Por isso se fala em ‘Wall of Money’.
Para dar um exemplo, o fundo de investimento da Apple – o que a Apple precisava investir para gerar juros – é maior do que a reserva do Banco Central da Alemanha. Isso acaba sendo o determinante das políticas em geral das grandes empresas. Aquilo que a Apple vai usar do seu fundo de investimento para reinvestir em tecnologia ou produção é um percentual ínfimo, e o resto fica pairando por ai como uma nuvem procurando ativos.
A questão – e aí é que está o link entre finaceirização e transformação urbanística, na qual a moradia é um elemento importante – é que o espaço urbano é um campo particularmente interessante e adequado para o circuito financeiro. Ao contrário do jogo especulativo de ações que podem virar pó do dia para a noite, o espaço construído pode perder ou ganhar valor, mas não some. Em segundo lugar, ele é tipicamente algo que pode acolher investimento de longo prazo, mesmo em um espaço mal construído. Finalmente, a terra e o espaço podem funcionar como garantia de empréstimos. Então, são ativos para alavancar mais dinheiro.
Muitos avaliam que estamos experimentando, no Brasil, um momento de neodesenvolvimentismo e não propriamente de financeirização no modelo dos Estados Unidos e de países europeus. Como você enxerga isso?
De fato é muito diferente. E de fato há uma controvérsia sobre o quanto se pode falar em financeirização da moradia no Brasil. Primeiro, porque o controle da produção de espaço pelas finanças é um processo que está em curso, mas começa no país já no final dos anos 1990. Ou seja, com um timing diferente dos Estados Unidos e dos países centrais europeus. E outra característica especifica é que hoje ele se dá, aqui, muito mais na construção do espaço comercial do que no espaço residencial. A produção residencial no Brasil é muito pouco financeirizada.
Um dos elemento fundamentais que gerou a crise financeira e hipotecária nos Estados unidos, na Espanha e em alguns outros países é a chamada securitização. Isso significa que a pessoa pega um empréstimo para comprar uma casa ou apartamento e essa casa ou apartamento ficam como garantia. O banco que gera o empréstimo não fica com essa hipoteca, mas vende a expectativa das prestações futuras que essa pessoa irá pagar para um outro investidor. E este outro investidor irá empacotar esses créditos com a expectativa futura de valorização de outras commodities – e irá vender para terceiros, de modo que a relação que se estabelecia entre a pessoa e o lugar começa a circular como um ‘paper’ em um circuito completamente abstrato. Assim, vinculou-se muito mais a relação das famílias com o seu lugar de moradia ao circuito financeiro global. No Brasil, quase não se tem esta securitização do crédito.
Destruição das políticas sociais
A partir de 2005 e 2006, vivemos uma expansão do crédito para consumo que se transformou numa grande expansão do crédito para a moradia, através do programa ‘Minha Casa, Minha Vida’, que subsidia segmentos com menor renda. Isso significa também uma ampliação das fronteiras do capital financeirizado na direção dos mais pobres.
Embora a hipoteca fique circulando, as pessoas é que estão endividadas. Isso é uma característica do processo de financeirização, que no Brasil ainda não se completou, mas está em curso. Enquanto os imóveis estavam valorizando, como no caso dos EUA e de outros países da Europa, as pessoas até hipotecavam duplamente ou triplamente a casa para pagar a universidade do filho ou para comprar um carro.
O mercado financeiro é um jogo, tem seus riscos, ele sobe e desce. Na hora que desceu e o castelo de cartas começou a desabar, foram as pessoas endividadas que foram atingidas, porque não podiam pagar prestações, perderam sua moradia. Aquele sistema de proteção social que existia antes para atender às necessidades dos mais pobres havia sido completamente desmontado. Muitos foram para as ruas.
É muito importante entender que estamos falando da construção de uma política [de mercado], mas, sobretudo, da destruição de outras [sociais]. E estamos vivendo isso de modo muito forte no Brasil hoje. Não é só a política que foi destruída, mas todo o imaginário social vinculado à ideia desta política. Aqui no Brasil nunca houve Estado de bem-estar social, mas a gente viveu uma expectativa consagrada na Constituinte de 1988 da construção desse Estado de bem-estar social. Portanto, a destruição desse imaginário é muito radical. E isso também é desmontado em nome de uma sociedade 100% estruturada através da lógica do mercado, da rentabilidade e do investimento.
Na atual conjuntura política, com o afastamento da presidenta Dilma Rousseff, já existem medidas que aprofundam esse processo de financeirização ou que ameaçam o direito à moradia?
Primeiro, é importante dizer que houve um paradoxo durante a era Lula. Não gosto de chamar o momento que vivemos no Brasil de ‘neodesenvolvimentismo’, porque ao mesmo tempo em que se ensaia talvez pela primeira vez a implantação de um Estado de bem-estar social através do aumento de uma intervenção forte do Estado na disponibilização de políticas sociais ou de uma rede de proteção social, ele se dá através de um modelo que traz consigo toda a lógica da financeirização.
Isso não aconteceu apenas na política de moradia, mas na política de educação também. Houve uma inclusão educacional, com expansão das vagas das universidades públicas, o que foi extremamente importante. Mas o grande movimento de inclusão foi através do Prouni, que é o subsídio para a aquisição de um produto educacional fornecido não por instituições educacionais mas por um fundo de investimento global, porque o setor educacional privado é um dos mais financeirizados do Brasil. Assim como a saúde, com os hospitais.
Esse processo de transformação do paradigma das políticas públicas – ao contrário do que alegam os propagandeadores do neoliberalismo, ao defenderem um Estado fraco e a entrada irrestrita do mercado – tem a participação ativa, a liderança, a condução e o financiamento por parte do Estado. No Brasil, mais ainda do que nos Estados Unidos e na Europa. Acredito que o exemplo mais eloqüente seja o do Porto Maravilha, no Rio de Janeiro. É o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço, o FGTS, dos trabalhadores, que financiou uma operação urbana de ampliação da fronteira do complexo imobiliário-financeiro no Rio de Janeiro. Essa é a contradição. Minha leitura é que chegou uma hora em que não se precisava mais do pedaço “redistribuição”, porque o marco regulatório da financeirização já está todo armado.
Olhando na perspectiva internacional, é possível entender o caminho que o Brasil foi construindo nessa direção, embora ele, contraditoriamente, apostasse na outra. Mas isso era insustentável e uma hora iria explodir. E explodiu da pior maneira, através de um golpe de Estado. Jamais as elites brasileiras e os pontas de lança do neoliberalismo iriam ganhar as eleições. Apesar disso, não podemos deixar de apontar todos os passos que foram dados durante a era Lula na direção de abrir espaço para a penetração do capital financeiro global.
Em seu livro, você descreve situações delicadas pelas quais passou como relatora da ONU, como quando autoridades britânicas questionaram sua atuação por ser ‘uma mulher e de um país do sul’. O que significou essa experiência na sua trajetória?
Vou fazer um depoimento muito pessoal. Eu nunca havia tido, até a relatoria, qualquer tipo de militância feminista. E aqui há uma questão de classe, porque tive que enfrentar talvez poucas barreiras na vida em relação à maior parte das mulheres.
Além disso, pela minha origem de imigrante polonesa- criada em ambiente multicultural, multilinguístico e cosmopolita-, me via como uma cidadã do mundo. Era difícil me enxergar como brasileira, antes de mais nada.
Para mim foi um enorme choque quando cheguei na Inglaterra. Em todos os países adotei esta postura: examinei, visitei os governos, conversei com comunidades, realizei audiência públicas e, no final, de forma muito independente, me manifestei sobre as situações de violação de direito à moradia que estavam ocorrendo.
Mas o Reino Unido foi o único lugar em que o governo não gostou do que falei e que a reação do partido foi de questionamento. Como era possível- e foi nesses termos- uma mulher brasileira, de um país marcado pela presença de favelas e pela falta de saneamento, ousar emitir qualquer opinião crítica sobre a política habitacional britânica? Afinal de contas, o que se pensa é que o papel dos países do sul, na sua condição de subalternidade no cenário internacional, é almejar implantar as políticas dos países europeus.
Naquele momento me caiu uma ficha sobre a própria posição de subalternidade em que nos colocamos como pensadores e militantes, como se fosse impossível sairmos dessa posição.
Foi importante para pensamos, inclusive, nos próprios modelos e nos caminhos que a gente tem que seguir. E senti o estigma de ser mulher. Evidentemente, eu sei que aquela foi a velha estratégia do “shoot de mesanger”: quando não se gosta da notícia que o mensageiro traz, você desconstitui o mensageiro. Entramos em conexão com pessoas que estavam sendo extremamente violadas e cujas vozes estavam sendo reprimidas. A presença da relatoria da ONU confirmando essas violações gerou grande repercussão na política interna.
*Thiago Hoshino é doutorando em direito na UFPR e pesquisador do INCT Observatório das Metrópoles.