Fonte: Carta Capital
Apesar do calor que ultrapassou os 32 graus no último domingo (28/09), a jornalista Crib Tanaka, de 36 anos, moradora da Gávea, bairro de classe média alta na Zona Sul do Rio de Janeiro, decidiu trocar o mergulho habitual no mar do Leblon por filmes na internet. Do outro lado da cidade, na mais humilde Zona Norte, a estudante Cíntia Oliveira, de 19 anos, também desistiu de encontrar os amigos e enfrentar os 21 quilômetros que separam sua casa, em Bonsucesso, da praia de Copacabana. Elas vivem realidades distintas. Mas tomaram a decisão por motivos similares: o clima de insegurança que tomou conta da orla de cartões-postais da cidade na última semana.
Após uma série de arrastões perpetrados por adolescentes em diversos pontos das praias cariocas, grupos de jovens de classe média tomaram as redes sociais com promessas de fazer justiça com as próprias mãos e mobilizaram a polícia, forçada a antecipar um esquema especial de policiamento que inclui bloqueios nos caminhos que levam à Zona Sul, além de revistas e apreensões nos ônibus vindos da Zona Norte. A praia, considerada o mais democrático dos espaços da cidade, tornou-se símbolo de uma crescente polarização entre ricos e pobres.
“Tenho medo dos arrastões, dos justiceiros e da própria polícia. Temo que eles não saibam reagir e deixem as pessoas mais revoltadas. Arrastão tem todo ano, mas estamos vivendo uma época de muita raiva, de uma hostilidade desnecessária”, conta Crib.
Inconformada com a situação, Cíntia também lamenta: “Eu estou triste. Tem muito moleque que vai à praia para fazer coisa errada mesmo, mas as pessoas agora ficam olhando para nós, assustadas, só porque moramos em comunidade, somos negros e pobres. Eles acham que o pobre é sempre ladrão. No ônibus, a polícia já chega na gente esculachandose tiver alguém ouvindo música. É muita injustiça. Não quero passar por essa vergonha. Prefiro ficar em casa com meus amigos do que correr o risco de sermos confundidos com criminosos.”
Ondas de roubos, furtos e agressões nas praias não são um fenômeno novo no Rio, apesar das tentativas de reforçar o policiamento com vistas aos Jogos Olímpicos. Mas, na semana passada, um grupo de jovens moradores da Zona Sul decidiu reagir e atacou outro grupo de adolescentes, acusado de praticar crimes, a bordo de um ônibus da linha 474, que leva à comunidade do Jacarezinho, na Zona Norte. Pelas redes sociais, moradores dos dois pólos da cidade demonstraram indignação com o clima de enfrentamento crescente. E prometeram vingança.
A estratégia da polícia foi rápida. Autoridades prometeram punição a quem violar a ordem, sejam ricos ou pobres, negros ou brancos, das Zonas Norte ou Sul. E anteciparam a chamada Operação Verão, com o reforço de 700 homens na orla nos fins de semana. Mas a medida provocou uma onda ainda maior de indignação: decidiu-se, ainda, montar bloqueios nas ruas, revistar os jovens que embarcam em determinadas linhas de ônibus, oriundas das periferias, e encaminhar alguns, sem dinheiro ou documentos, para a delegacia.
Especialistas condenam a prática, alegando que as abordagens são aleatórias e discriminatórias – uma vez que, no Brasil, uma pessoa só pode ser presa em caso de flagrante ou através de mandado judicial. Trata-se, para muitos, de uma violação de direitos humanos.
“Vemos uma ação completamente inadequada da polícia. Os agentes fazem blitze em trajetos específicos e abordam jovens de perfil específico. Normalmente são negros, do sexo masculino e pobres. Estamos assistindo à violação do direito de ir e vir desses jovens e do direito deles ao lazer, que é a praia. Estar de bermuda, sem dinheiro e sem camisa não é crime. Reforçar o estereótipo de que o jovem com essas características é bandido apenas contribui para agravar o conflito e a segregação social na cidade. Isso é ilegal e incompatível com os valores olímpicos que o Rio de Janeiro quer mostrar ao mundo no ano que vem”, afirma Renata Neder, assessora de direitos humanos da Anistia Internacional no Rio.
Entre as 8h e as 20h, 700 policiais militares, com apoio do Batalhão de Operações Especiais (Bope) e do Batalhão de Choque, e cerca de 300 guardas municipais patrulharam a orla e os pontos de ônibus de bairros como Ipanema e Copacabana. Somente no domingo, foram apreendidos em ônibus 26 menores de idade. A ordem é que crianças de até 11 anos que estiverem sozinhas sejam levadas a abrigos. Já a situação dos adolescentes maiores de 12 anos será avaliada, individualmente, por agentes da Secretaria de Desenvolvimento Social. O secretário estadual de Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, acompanhou pessoalmente as operações. E, numa visita à blitz montada na entrada de Copacabana, diante da revista de um adolescente, negou que a Polícia Militar esteja praticando atos discriminatórios.
“Não é agradável ficar assistindo a essas coisas, mas também não se trata de nenhum tipo de segregação social. Trata-se de ver jovens que estão em situação vulnerável, que precisam de uma tutela, seja dos pais, seja do Estado. Não é a polícia que está abordando os menores. A polícia está parando os ônibus e, quando se trata de menores, vem alguém da assistência social que tem essa expertise. O que a polícia está fazendo é revistando pessoas”, disse Beltrame à DW Brasil. “Quero deixar muito claro que isto não é um apartheid social. Não estamos aqui adivinhando ou pré-julgando se a pessoa vai praticar furto ou assalto na praia.”
Contradição do projeto olímpico de mobilidade urbana
Para Itamar Silva, diretor do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), o Brasil vive um momento de criminalização excessiva da juventude mais pobre, como, por exemplo, através da redução da maioridade penal. Sem projetos educativos e ações de longo prazo, para ele, as operações policiais apenas acirram o estereótipo de que um jovem negro ou pobre não tem potencial.
“É um absurdo tão grande recolher esses jovens dos ônibus! Eles não reconhecem na juventude pobre uma juventude potencial. Acham que é preciso conter essa juventude mantendo-a no seu gueto. É um desserviço à sociedade. É preciso um policiamento preventivo sem estereótipos”, observa.
Um ponto-chave capaz de acentuar revolta e segregação, avalia Silva, são as mudanças provocadas pelo Jogos Olímpicos de 2016. E isso porque, com as obras de mobilidade urbana projetadas pela prefeitura para desafogar o trânsito do Rio, dezenas de linhas de ônibus que ligam diretamente as Zonas Norte e Sul serão extintas ou encurtadas, fazendo com que os moradores das áreas menos nobres da cidade tenham mais dificuldade para chegar à praia. Será mais um golpe contra a autoestima de uma parcela da população que já se sente discriminada por sua condição sócio-econômica inferior, opina.
“Existe uma distorção na visão de mobilidade urbana do poder público. Não há uma preocupação real de ampliar o direito de circulação pela cidade. É uma contradição do Rio, valorizar os pontos olímpicos e não responder às demandas de áreas periféricas, melhorar as conexões com os trens que partem para o subúrbio. A sensação na periferia é de discriminação. Essas populações percebem que o que já é difícil vai ficar ainda pior. E existe uma disposição dos jovens em enfrentar essa dinâmica. A contestação é algo típico de qualquer jovem, a liberdade é típica dos jovens. O pavio está aceso”, adverte Silva.
Nas areias, apostas de dias melhores
As ações policiais devem se manter ao menos até o fim do verão. Coronel da reserva da Polícia Militar, José Vicente da Silva Filho é ex-secretário nacional de Segurança e reconhece que medidas como o recolhimento de adolescentes nos ônibus são paliativas. Porém, afirma, é necessária neste momento para intimidar potenciais infratores e reduzir a sensação de que pequenos delitos acabam impunes. O que falta, segundo ele, é uma aposta de longo prazo em Inteligência e coleta de informações para que as autoridades saibam, de fato, quem é criminoso e quem é cidadão de bem.
“Essas medidas são como dar aspirina para um processo infeccioso. Ou seja, não adianta. O que as autoridades não perceberam ainda é que certos fenômenos de violência precisam ser observados mais de perto. É preciso saber quem são os infratores, de onde vêm, por que agem. Esse trabalho deveria ser feito em parceria com outros órgãos públicos. Quando os recursos educacionais falham e o sistema social é deficitário, o problema chega maior à polícia. A polícia é apenas a última instância”, diz o coronel.
Nas areias, a aposta é por dias melhores. “Espero que a polícia colabore e encontre uma solução justa, com tratamento digno para todo mundo. Aqui o pobre é sempre suspeito, né?”, diz o vendedor de mate Cléber Luiz, de 48 anos.” Mas nem todo mundo é ladrão. Digo ao pessoal que venha para a praia. É só vir com pouco dinheiro, sem cordão, prestar mais atenção às bolsas. Ninguém pode ter medo de se divertir.”