Com um grande abraço simbólico em torno da praça General Tibúrcio, na Praia Vermelha, mais de 400 representantes de movimentos sociais e dos trabalhadores, montanhistas, geólogos, pesquisadores, ambientalistas e legisladores do campo progressista marcaram presença em mais um ato contra o empreendimento turístico que vem alterando de forma irreversível um dos mais emblemáticos patrimônios do Rio de Janeiro.
O Movimento Pão de Açúcar sem Tirolesa (PdAST), que tem o apoio formal do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (SENGE RJ) segue na luta pelo embargo definitivo da implantação de uma tirolesa entre os morros da Urca e Pão de Açúcar. O brinquedo que, por quatro cabos paralelos aos dos bondinhos, permitiria a descida de cerca de 100 pessoas por hora, ao longo de todo o dia, penduradas por um cabo, a 100Km/h, pode vir a mudar tanto o objetivo quanto o uso da área da unidade de conservação de proteção integral que abriga os monumentos naturais e sua fauna e flora local.
O ato é mais um capítulo de uma luta que atravessa gerações e levou a sociedade civil, ao longo das décadas, a defender ativamente a integridade de um dos monumentos naturais mais emblemáticos do mundo.
A parte desse enfrentamento que coube a essa geração começou em janeiro deste ano. “Depois de uma forte chuva, uma mancha branca se espalhou pelo costão do morro. Um montanhista gravou imagens com seu celular, o conteúdo viralizou e ganhou destaque na mídia”, conta Sérgio Alvim, advogado e arquiteto, membro do PdAST. Alarmados, sociedade civil e órgãos de fiscalização voltaram sua atenção para o topo do morro. O rei estava nu: uma obra em andamento era responsável pela massa de pó de pedra que escorreu morro abaixo. Os detritos eram resultado de corte em rocha, uma intervenção ilegal e irreversível que vinha acontecendo desde setembro de 2022.
Foram cerca de três meses entre a licença do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e a primeira interrupção, em 17 de janeiro, cinco dias depois do aparecimento da mancha. Em fiscalização, o órgão constatou a escavação de 49,70m3 de rocha do Pão de Açúcar e 78,13m3 do Morro da Urca, antes mesmo da apresentação do Projeto Executivo da obra. Em despacho, a servidora responsável, Cláudia Espasadin, confirmou o corte de rocha irregular. “Ocorre que no Anteprojeto aprovado por este Iphan não há qualquer menção gráfica ou textual acerca do corte no costão rochoso”, destacou Cláudia.
Nenhuma multa foi aplicada e a paralisação das obras não durou muito. Com a apresentação do Projeto Executivo apenas uma semana depois, em 25 de janeiro, o Iphan autorizou a retomada do empreendimento a partir de fevereiro. O movimento Pão de Açúcar sem Tirolesa, no entanto, seguia denunciando a irregularidade das obras e, em 11 de abril, o Ministério Público Federal realizou nova fiscalização, constatando a mutilação da rocha. “O amparo do Ministério Público Federal foi fundamental. Encontramos gente técnica, capaz, correta, que entendeu que o risco de danos irreversíveis ali é grave”, conta Sérgio.
Com a entrada do MPF, que hoje toca investigação sobre o caso, foi expedida uma liminar no início de junho, paralisando novamente as obras. Pela estranha condução da questão, o Iphan figura, ao lado da Caminho Aéreo Pão de Açúcar, empresa que administra o espaço desde 1909, como réu na ação.
Embora a tirolesa esteja no centro dos debates, ela é apenas uma de muitas intervenções que a empresa tem planejadas. Segundo Sérgio, são 10 projetos em licenciamento junto ao Iphan.
“Protocolados a partir de 2020, esses licenciamentos podem parecer, mas não são projetos isolados. Quem trabalha com urbanismo sabe como funciona. Você apresenta um fusca, já com um caminhão pronto para vir atrás, a reboque. A tirolesa é só a ponta do iceberg”, alerta. “Esperamos que a sentença caminhe para proibir esse tipo de intervenção e que caiam por terra os outros projetos também, ou administrativamente, ou judicialmente, caso o MPF entenda ser necessário mover outras ações para os demais projetos em licenciamento”, finaliza.
Bom senso em falta
Sobre o ato, que contou com apresentação da Orquestra Rio Camerata, nenhuma linha foi escrita pela imprensa tradicional. Apenas o El País repercutiu o abraço simbólico organizado pelo PdAST. A data não passou em branco, no entanto. Foi veiculado na véspera do ato, no Jornal O Globo, um anúncio de página inteira trazendo manifesto intitulado “Pelo Rio, um aceno ao bom senso”, em defesa das obras.
Assinado por entidades como as associações de Shopping Centers, de Indústria de Hotéis, Empresas de Eventos, Parques e Atrações, Agentes de Viagens, entre outras, a carta tenta apresentar o outro lado da história em tópicos. Segundo o documento, “as intervenções no monumento natural são, tecnicamente consideradas de impacto reduzido e necessárias para garantir a acessibilidade de pessoas com deficiência”. Destaca, ainda, que a tirolesa não vai gerar maior concentração de visitantes por hora no alto dos morros, uma conta difícil de fechar, considerando a instalação de uma atração com público diverso daquele que já frequenta o ponto turístico pela vista da cidade. Estudos sobre impactos sonoros e de trânsito, segundo a publicação, ainda estão sendo realizados. Sérgio caracteriza o documento como “um festival de falácias” e aponta as inconsistências entre o discurso e os fatos.
“São frases de efeito reunidas em torno da reafirmação de uma lógica que não condiz com a realidade. É sintomático que tenhamos, na véspera do ato, uma matéria paga, que custa cerca de R$1 milhão e meio, assinada por entidades ligadas a setores econômicos, sem nenhum apoio de representantes da sociedade civil ou de movimentos ligados ao urbanismo, à cidade em si”, destaca.
Desde sempre, alvo do lucro
Não é a primeira vez que o Pão de Açúcar entra no radar de investidores como uma oportunidade para lucrar em atividades que se afastam da administração dos teleféricos e centro de visitação. Em diferentes momentos, cariocas tiveram que se organizar para impedir a descaracterização do monumento natural.
Um dos momentos mais expressivos da luta aconteceu em 1973. Naquele início de anos 1970, a proposta de construção de um prédio espelhado de três pavimentos no topo do Pão de Açúcar reuniu Carlos Drummond de Andrade, Djanira, Fernando Sabino e Roberto Burle Marx em movimento que culminou no tombamento da área naquele mesmo ano.
Mais tarde, em 1991, os planos eram para o desmatamento e construção de um anfiteatro entre o morro da Urca e do Pão de Açúcar. O empreendimento também contava com um projeto para um parque Turma da Mônica. A luta da sociedade civil levou à criação da unidade de conservação que protege – ou deveria proteger – o espaço de novas investidas para transformar o patrimônio natural em um parque de diversões, esportes radicais e espaço para eventos.
Em nova iniciativa, em 2012, a Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar anunciou a criação de duas novas linhas de bondinhos, ligando o Pão de Açúcar aos morros do Leme e da Babilônia. A ideia foi engavetada após a Câmara de Vereadores do Rio proibir, por lei, as intervenções. Dez anos depois, a empresa volta a mirar o Pão de Açúcar como espaço para a exploração de um novo empreendimento.
“É muito significativo que, 50 anos depois, estejamos ainda na mesma luta que levou ao tombamento do Pão de Açúcar. É nossa obrigação carregar esse legado que preservou o monumento natural até aqui. Na época do tombamento, essa luta contou com pessoas influentes, com muito mais condições de acessarem diversos setores da sociedade em sua época do que nós agora. Torço para que as pessoas lembrem desses nomes e entendam o valor histórico, cultural, ambiental que eles defendiam e que nós defendemos hoje”, conta Sérgio.
Frágil tripé argumentativo
“Todas as licenças foram concedidas, houve consulta popular e não há aumento construtivo na obra”. Esses são, segundo Sérgio, os argumentos apresentados para justificar a continuação das obras, ainda que não sejam inteiramente verdadeiros.
“Ao analisar o projeto inteiro em licenciamento, o Master Plan, o aumento de área construída é de 50% em cada uma das três estações, em um total de 6 mil metros quadrados. As passarelas para a área de lançamento da tirolesa não apresentam aumento da área construída por não serem cobertas, mas se projetam para fora dela, sobre a unidade de conservação. São elementos construtivos que mudam a volumetria do ambiente tombado e avançam sobre um bem público”, destaca o arquiteto, apontando, ainda, a inexistência, nos projetos, de contato entre os pilares que sustentam a plataforma e o terreno. “Como é possível olharem uma planta que não indica onde os pilares estarão assentados e acharem normal? Pilares não flutuam”, destaca.
Já a consulta pública, também aconteceu pela metade. Sem um chamamento amplo à sociedade, a empresa se reuniu com integrantes do conselho do Monumento Natural dos Morros do Pão de Açúcar e Urca (MoNa) e apresentaram maquetes e perspectivas – que não são considerados documentos técnicos. O grupo não tinha poder deliberativo. “Audiências públicas foram tentadas pela Câmara do Rio, mas a empresa nunca aparece. Também tentamos ir até eles e, mesmo na companhia de vereadores, fomos barrados na porta. É difícil entender como uma empresa desse porte, com um capital tão elevado e apoio de tantas entidades pode ter tanto medo de conversar com meia dúzia de pessoas”, aponta Alvim.
Não é diferente quando o assunto são as licenças para a obra. Elas existem: o Iphan concedeu as autorizações – apontadas como ilícitas pelo MPF -, mesmo constatando o dano causado. A prefeitura também licenciou, após laudo da Geo Rio. As licenças, no entanto, ignoram a legislação que protege os bens tombados. O despacho da 20a Vara Federal do Rio de Janeiro, que paralisou as obras, traz em sua fundamentação, entre outros textos, o Decreto-Lei nº 25/1937, que diz, em seu artigo 17, que “as coisas tombadas não poderão, em caso nenhum, ser destruídas, demolidas ou mutiladas”. O documento também cita o Alerta Patrimonial emitido pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (ICOMOS), órgão consultivo da UNESCO para a implementação da Convenção de Patrimônio Mundial. O documento determina que os cortes de rocha “devem ser imediatamente paralisados, pois trazem impacto e alteração na geomorfologia do patrimônio tombado, causando dano irreparável a um recurso natural não renovável de importância fundamental”.
“Possuir licenças não confere a ninguém direito de fazer o que quer. Ter licença para dirigir não significa que se pode avançar os sinais. O mesmo ocorre ali. Argumentar que as autorizações foram dadas para garantir a segurança jurídica é uma falácia. Desrespeitar a Lei 25/1937 não fere a segurança jurídica?”, indaga Sérgio.
Enquanto o processo corre, o debate segue e, até então, a defesa da integridade dos morros segue de pé. Em julho, o Tribunal Regional Federal da 2ª Região Administrativa negou pedido de agravo da Companhia Caminho Aéreo Pão de Açúcar, mantendo os efeitos da liminar da Justiça Federal.
“É desanimador ter que rebater argumentos vazios como ‘são só mais alguns cabos’, ‘os impactos serão mínimos’ ou, ainda, ‘se colocaram os bondinhos, podem colocar a tirolesa’. Entendemos os interesses econômicos envolvidos, mas é preciso traçar um limite claro onde esses interesses não podem se sobrepor àqueles da preservação, conservação e do uso natural do espaço. A ampliação da área de 2004 para cá já é absurda. Não deveria existir praça de alimentação, heliporto, espaço para festas em local que tem função de contemplação. Não dá pra pensar como se estivéssemos no início do século XX, quando se agia sem considerar que os recursos naturais não são infinitos. É importante que existam limites para a expansão econômica, arquitetônica e imobiliária, um equilíbrio entre elas. É preciso entender que para tudo há limites”, finaliza Sérgio.