O maior crime ambiental da história da mineração no Brasil completou nove anos no último mês de novembro. O rompimento da barragem da Samarco, empresa controlada pela Vale e pela britânica BHP Billiton, matou 19 pessoas, desabrigou 600 e deixou 1,2 milhão de pessoas sem acesso à água potável. Foram atingidos 49 municípios que estavam no caminho dos 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos que percorreram 663 quilômetros em Minas Gerais e Espírito Santo, até chegar ao mar.
Foram nove anos de luta para os atingidos pela negligência criminosa da Samarco. Na justiça, famílias pobres, organizadas no Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB), enfrentam duas empresas que disputam a liderança do mercado global de mineração.O Soberania em Debate, programa do projeto SOS Brasil Soberano, recebeu Helder Boza, da coordenação nacional do MAB, para trazer informações sobre os últimos capítulos da luta pela reparação integral, incluindo a reconstrução das moradias e o reconhecimento das comunidades atingidas.
Não é um histórico simples: em menos de uma década, a negociação já chegou a três acordos, o último concluído em novembro. “Temos um acordo a cada 3 anos, que é feito e desfeito em uma batalha judicial. A população atingida vive numa montanha russa”, destaca Helder. Entre os pontos mais difíceis na negociação com a Fundação Renova, empresa criada para executar a reparação, é alcançar todos os atingidos. Segundo Helder, a fundação sempre se negou a reconhecer que determinadas áreas do estado do Espírito Santo, em especial aquelas que vivem de seu litoral, foram impactadas. O litoral do Espírito Santo recebeu 40 milhões de metros cúbicos de rejeito, lançados pelo colapso totalmente evitável das barragens, e vem contaminando pessoas, além da fauna e a flora.
Acordo insuficiente
O acordo ainda em vigência, recém-aprovado, começou a ser construído em 2021 e, segundo Helder, por ser executado pelo Estado burguês, sempre priorizou a segurança jurídica das empresas, não a reparação total. “É um acordo superior ao assinado em 2021, mas ainda é muito frágil em diversos aspectos. O judiciário se preocupou em todo momento a resguardar os interesses das empresas. Ele foi o advogado delas em uma mesa de negociações onde a participação dos ativistas organizados foi negada”, contou o dirigente.
Com uma experiência acumulada desde as décadas de 1960 em conduzir processos de luta e negociações em casos de famílias atingidas pela negligência de empresas com suas barragens, o MAB foi excluído da mesa pelo judiciário. Inicialmente junto ao Conselho Nacional de Justiça e, posteriormente, ao TRF 6, o MAB seguiu requisitando a sua participação, sem sucesso.
“Fizemos uma mobilização grande em torno do Brasil, mas negaram nossa participação, novamente, em setembro. O TRF6 teve uma narrativa muito conservadora, que apontou que os atingidos já estavam representados na mesa pelo Ministério Público Federal e pela Defensoria Pública. Juridicamente faz sentido, mas politicamente, não faz nenhum. Os atingidos queriam interlocução própria. O debate não é essencialmente jurídico; trata-se de política, movimento popular e luta social”, denunciou Helder.
As consequências foram óbvias: um acordo sem os atingidos como foco central carrega inúmeras insuficiências. O próprio valor a ser pago aos atingidos, no acordo atual, é rebaixado em relação ao que a própria fundação Renova praticou na bacia do Rio Doce. A empresa propôs e o judiciário achou por bem aceitar um valor menor que o acordado anteriormente.
Conquistas alcançadas
O acordo só não foi pior para os atingidos pela lama da Samarco pela resistência e luta organizada. Historicamente, nesses nove anos, as empresas nunca aceitaram reconhecer o dano à saúde. Havia a preocupação constante em não abrir um precedente para o reconhecimento dos danos à saúde, sentidos cotidianamente pelas populações atingidas e que se acumulam à medida que não são resolvidos. Garantir o nexo de causalidade era importante.
“Este foi um avanço importante no último acordo. Foi constituído um fundo de R$ 12 bilhões a serem investidos no Sistema Único de Saúde. Para nós, é uma conquista que não supre o déficit da indenização individual, mas é um avanço muito interessante”, destacou Helder.
O direito das mulheres também avançou nas últimas negociações: até então, Vale e BHP não as reconheciam como atingidas. Elas eram cadastradas como dependentes de seus esposos, ainda que as atividades produtivas da população atingida, a pesca e a agricultura artesanal, envolvessem todo o núcleo familiar. Até agora, centenas de mulheres eram invisibilizadas nos planos de reparação. O novo acordo traz a criação de um fundo de R$ 1 bilhão de onde serão organizadas as reparações individuais e coletivas das atingidas, agora reconhecidas.
“A Fundação Renova, empresa testa de ferro da Vale e PHB, passou nove anos executando a reparação coletiva sem nenhuma autonomia ou diálogo real com os atingidos. Saúde, meio ambiente, direito individual, dano moral coletivo, reestruturação social, econômica e cultural das comunidades destroçadas por aquele crime nunca estiveram de fato no centro do debate”, apontou o coordenador do MAB.
O acordo de setembro, finalmente, avançou nesta relação: um fundo de R$ 5 bilhões será destinado à deliberação direta das comunidades, que serão suas gestoras. Com método participativo, os investimentos para a reconstrução das comunidades serão definidos pela sociedade civil, movimentos sociais e atingidos.
A luta continua
Um acordo contraditório. É assim que o MAB vê o resultado do último ciclo de negociações. Segundo Helder, a luta das populações e comunidades atingidas pelo lamaçal tóxico seguirá buscando uma reparação completa. Por hora, um ciclo importante para a luta chegou ao fim.
“Tivemos vitórias históricas e derrotas que precisam ser corrigidas. A Fundação Renova vai acabar, e isso precisa ser comemorado. Ela é tão criminosa quanto a Vale e a BHP. Pelo que fez com as comunidades nesses nove anos, alimentando a divisão e conflitos e piorando as coisas. Muitos problemas de saúde não são causados pelos rejeitos tóxicos, mas por como a Renova executou a reparação. A ansiedade e a depressão entre os atingidos, são culpa da Renova. Seu fim abre um novo ciclo. Estamos prontos para mais dez anos de luta, se preciso”, finalizou o entrevistado.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra. O programa também pode ser assistido pela TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo. O programa também pode ser assistido pelo Canal do Conde.
Texto: Rodrigo Mariano | foto: Antonio Cruz/Agência Brasil