O desvio do poder de legislar para proteger golpistas | Jorge Folena

Por Jorge Folena*

 

Alexis Tocqueville, em A democracia na América, diante da “tirania da maioria”, assim se manifestou: “Quando, pois, vejo concedido o direito e a faculdade de tudo fazer a um poder qualquer, seja ele o povo ou o rei, a democracia ou a aristocracia, exercido numa monarquia ou numa república, eu afirmo: está ali o germe da tirania e procuro viver sob outras leis”.

O que se está intensificando no Brasil, desde o golpe de 2016, que afastou a presidente Dilma Rousseff da chefia do governo, é o desvirtuamento, pela maioria do parlamento, dos objetivos traçados pelos constituintes de 1987/1988. Estamos assistindo à deformação da Constituição promulgada em 05/10/1988, num processo que se iniciou a partir dos governos Itamar Franco e FHC e se ampliou sob os desgovernos de Temer e Bolsonaro.

A atual “maioria” parlamentar, formada pelo “centrão” e a bancada bolsonarista, tem trabalhado diretamente contra os interesses da população, promovendo reformas constitucionais e legislativas que constituem verdadeiros retrocessos: eliminaram direitos sociais e trabalhistas, entregaram o controle das empresas estatais e do Banco Central às mãos do mercado financeiro, limitam gastos orçamentários e promovem a devastação do meio ambiente, em benefício dos interesses dos seus financiadores de campanha.

Vive-se uma “tirania da maioria”, que detém a capacidade formal para reformar a Constituição e até limitar os poderes do Executivo e do Judiciário. Porém, essa “maioria” é falsa e sem legitimidade efetiva, pois as decisões acima mencionadas e tomadas no parlamento, pela sua importância e desconfiguração do pacto político firmado em 1988, deveriam ser respaldadas por plebiscitos ou referendos, previstos como expressão máxima da soberania popular, representada pelo enunciado segundo o qual “todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Constituição”.

Ocorre que essa “maioria” parlamentar tem promovido frequentes desvios do poder de legislar, ao elaborar medidas legislativas contrárias ao interesse público, pois seu objetivo deveria ser legislar conforme os interesses dos que os elegeram. Porém, o que fazem é usurpar o voto conferido a eles pelos cidadãos brasileiros. É o que pretendem fazer mais uma vez, com o seu “pacote da impunidade”, construído pela aliança entre os parlamentares bolsonaristas e os do “centrão”, para beneficiar a si e aos líderes golpistas de 8 de janeiro de 2023.

Esse “pacote” pretende alterar a Constituição para garantir que: (i) os parlamentares somente serão processados criminalmente mediante autorização do parlamento; (ii) a decretação de prisão em flagrante de parlamentar ocorrerá apenas nos casos de crimes inafiançáveis, previstos na Constituição; (iii) as ordens judiciais contra parlamentares serão cumpridas apenas dentro do parlamento, mediante autorização legislativa; e (iv) seja estabelecido o fim do foro de prerrogativa de função, para que o STF deixe de julgar Suas Excelências e o ex-presidente, acusado de golpe de Estado e investigado em muitos outros delitos, que estão sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

Assim, esse projeto constitui um verdadeiro abuso do poder de legislar, exercido por uma “tirania da maioria”, que deseja reduzir as competências do STF, previstas na Constituição de 1988, e introduzir alterações que constituem violação à cláusula pétrea da separação de poderes e ao princípio constitucional da impessoalidade, na medida em que pretendem alterar a Constituição para atingir finalidade diversa do interesse público.

Na verdade, o objetivo do grupo de parlamentares que propõe a medida é alcançar “benefícios de interesse de cunho privado”, conforme já analisado pelo STF no julgamento da ADPF 850, quando o Tribunal enfrentou o orçamento secreto, por meio do voto conduzido pela ministra Rosa Weber.

Considero importante destacar parte de ementas de outros casos julgados pelo plenário do STF, nos quais se detectou o desvio de finalidade, como ocorreu no indulto concedido pelo ex-presidente/réu em favor do seu correligionário Daniel Silveira:

“A teoria do desvio de finalidade aplica-se quando o agente público competente pratica ato de forma aparentemente lícita, mas com objetivo de atingir fim diverso do admitido pelo ordenamento jurídico, importando em violação de princípios constitucionais.” (ADPF 964)

No mesmo sentido:

“O desvio de finalidade tem como referência conceitual a ideia de deturpação do dever-poder atribuído a um determinado agente público que, embora aparentemente dentro dos limites de sua atribuição institucional, mobiliza a sua atuação especificamente não imposta, ou não desejada pela ordem jurídica, ou pelo interesse público.” (ADI 5.468)

Portanto, mesmo que haja votos suficientes para aprovar a emenda constitucional da “impunidade”, ela deverá ser declarada inconstitucional pelo STF, que está se deparando com uma organização parlamentar que representa grave perigo à democracia.

Além disso, é preciso realizar, o mais rápido possível, o julgamento dos réus que tentaram dar um golpe de Estado e abolir o Estado democrático de direito no Brasil, crimes gravíssimos, de acordo com a Constituição de 1988, para reafirmarmos a nossa soberania e a independência do Poder Judiciário.

Daí a importância, neste momento, de a sociedade brasileira se ombrear e se solidarizar com os ministros do STF, que estão sendo atacados pelos bolsonaristas e pelo governo dos Estados Unidos da América do Norte. Porque defender nossas instituições e apoiar o desempenho do presidente Lula é defender os verdadeiros interesses do povo brasileiro.

 


 

* Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ, Jorge também coordena e apresenta o programa Soberania em Debate, do movimento SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.

Foto: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

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