A Ordem dos Advogados do Brasil do Rio de Janeiro (OABRJ) lançou nesta quarta-feira (12) a Comissão Especial de Estudo e Combate ao Lawfare. É a primeira comissão da Ordem no país formada para estudar o uso do sistema jurídico como arma para perseguir e destruir adversários, cujo caso mais notório foi a Operação Lava Jato, em que o ex-juiz e senador Sergio Moro e o Ministério Público do Paraná se articularam para impedir Lula de ser candidato em 2017, entre outros alvos.
A advogada Valéria Teixeira Pinheiro, presidente da Comissão, alertou, no entanto, que, além da operação que atingiu o presidente Lula, são muitos os episódios de lawfare no país. “Existem outros casos que não são fáceis de detectar, e é nesse sentido que nossa comissão vai trabalhar: estudar os casos e tentar descobrir mecanismos para paralisar essa prática de lawfare.”
Segundo Cleide Martins, advogada e pedagoga que coordena a Rede Lawfare Nunca Mais, a comissão também deve contribuir com a entidade para desenhar e propor ao governo “um modelo de monitoramento e combate” ao lawfare. A expressão se formou a partir da junção das palavras em inglês law (lei) e warfare (guerra), para indicar o uso distorcido da lei para atacar adversários, destruindo suas reputações, ferindo-os moral e politicamente, levando-os à prisão.
A vice-presidente da nova comissão, Brunella Fonseca Moraes, destacou a relevância de estudar o lawfare. “A gente tem muita vontade de criar um conceito robusto sobre o tema, para que ele possa ser identificado e conhecido, porque muitas pessoas são vítimas e não sabem que o são”, afirmou.
A Comissão Especial de Estudo e Combate a Lawfare da OABRJ vai atuar com eixos temáticos, a serem detalhados em um seminário internacional programado para setembro, explicou Luciano Tolla, empossado como secretário-geral da comissão. A questão das estatais é um dos temas, abrangendo, além das empresas e servidores vítimas de perseguições, as entidades como os Tribunais de Conta, que, segundo o advogado, “tiram do fundo do baú denúncias completamente vazias”. Segundo ele, foi o que fizeram, por exemplo, com o geólogo Guilherme Estrella, que chefiou a equipe de pesquisa do pré-sal, e se tornou alvo de lawfare como parte do amplo ataque feito à Petrobras, desde o golpe dado na presidenta Dilma Rousseff, em 2016.
Outros eixos da comissão incluem aspectos relativos ao próprio Judiciário, por meio dos quais a comissão vai buscar mostrar à sociedade o que significa uma delação premiada, recolher subsídios acadêmicos, elaborar projetos de lei, mexer na grade curricular do Direito para criar uma disciplina dedicada ao lawfare. Nessa iniciativa, a comissão já tem parceria firmada com a Federação Nacional dos Estudantes de Direito (Fened).
Há ainda uma linha de ação junto aos empresários e aos advogados. Com estes últimos, uma preocupação especial é com a cooptação de profissionais mais jovens – inclusive por parte de órgãos internacionais, como tem feito o Departamento de Justiça dos EUA com neófitos rapidamente catapultados à condição de milionários. “Vamos apontar, responsabilizar e até penalizar, porque advogado não pode ser bandido,” afirmou Tolla.
O último eixo, segundo o secretário-geral, vai tratar da mídia. “Temos a parceria da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), que é uma frente de batalha importantíssima. E vamos apontar o dedo do comprometimento da mídia conservadora, convencional, que forma esses cartéis.” O lawfare atinge todos os setores, não só o campo progressista, alertou Tolla. “Tem um objetivo essencialmente econômico, de surrupiar nossas riquezas.”
Cultura feudal
O lawfare é um efeito de duas principais características da sociedade brasileira: a ausência de republicanismo e de cultura política democrática, explicou a advogada Gisele Citadino, da coordenação da Associação Brasileira de Juristas pela, Democracia (ABJD), uma das pioneiras no país na denúncia dessa prática, junto à advogada Carol Proner, da mesma entidade.
Ela lembra a solidão do início da luta contra o lawfare, quando as duas advogadas confrontavam o discurso hegemônico de celebração a Moro. “Na porta do TRF4, em Porto Alegre, lançamos o livro ‘Uma sentença anunciada – o processo Lula’, denunciando o lawfare. O lançamento foi em cima de um caminhão, para 70 pessoas, e não significou nada. Depois, fizemos o lançamento na porta da Polícia Federal em Curitiba, quando Lula estava preso, e éramos 35 pessoas. Era como falar para o vazio, ninguém estava interessado em ouvir críticas ao homem que foi transformado em herói nacional. Por isso, só posso ficar muito feliz, pessoalmente, por conta do meu ativismo político desde 2016, ao ver a OAB do Rio criar essa comissão.”
Gisele destacou a ausência histórica de republicanismo no país, a dimensão feudal da cultura política brasileira, que se traduz na privatização do que é público. “O senhor feudal é o proprietário da cidade, da praça. O feudalismo nos mostra a ideia de uma elite que, pelo lugar que ocupa socialmente, tem um acesso privilegiado e de certa forma o monopólio do que deveria ser por todos compartilhado.”
No Brasil, esse feudalismo se caracterizaria na aceitação de que a coisa pública possa ser transferida para algum interesse privado. “Todas as formas de patrimonialismo, os filhotismos, toda a apropriação do que é público mas é vivido como se fosse privado é ausência de republicanismo”, afirmou Gisele. “Existem determinados grupos que se apropriam privadamente de pedaços do Estado e usam como se fossem seus. Quando a gente olha para Sergio Moro e a força-tarefa da Lava Jato, por exemplo: o que essa gente faz, senão se apropriar privadamente do sistema de justiça para impor sua visão de mundo?”
O lawfare, nesse sentido, compõe a guerra híbrida, num processo que passa pela destruição de parte da economia do país. “Pensando nos EUA, é uma guerra para estraçalhar o parque das nossas empreiteiras, para que as empreiteiras daquele país ocupassem o lugar delas”, afirmou, lembrando que havia sido uma empresa brasileira que ganhara a licitação para o aeroporto de Miami.
Essa manipulação dos processos legais, contudo, só é possível, reconheceu Gisele, devido à falta de compromisso republicano e de cultura política na sociedade para identificar e reagir à gravidade de um agente público usar seu poder para interferir na vida pública. “Essa falta de republicanismo nos ajuda a compreender como o lawfare se instala e sobrevive no Brasil muito bem. Porque conta com apoio, divulgação e amparo das elites”, criticou a advogada da ABJD.
Ao lado da falta de republicanismo, Gisele aponta a ausência de cultura democrática, num país em que todas as mudanças, da Independência ao fim da ditadura militar, foram promovidas por acordos feitos “pelo alto”. A exceção, na avaliação da advogada, foi a Constituição de 1988, de significativa participação popular.
“Não estamos habituados a celebrar a soberania popular, exceto nos processos eleitorais”, lamentou a jurista. Além disso, a exclusão das camadas populares, a falta de soberania popular, “também é algo que cria o chão de onde brota com muita energia o lawfare. Se a gente tivesse uma sociedade onde a cultura democrática fosse efetiva, a gente pudesse debater política como debatemos futebol… é um sonho que eu tenho. A criminalização da política só interessa a quem defende propostas autoritárias.”
Confira a transmissão na íntegra da posse da Comissão Especial de Estudo e Combate ao Lawfare
https://www.youtube.com/watch?v=prDU4Zi4PkY