Nos últimos meses, o Brasil testemunhou duas operações de grande porte contra organizações criminosas que expõem, de forma cristalina, as duas visões concorrentes sobre segurança pública no país. Se antes era comum ouvir que a esquerda não tinha um projeto para a área, essa narrativa agora não se sustenta mais.
O que está em jogo é uma disputa de modelos: de um lado, uma política baseada na violência exagerada, que passa do limite da legalidade e surfa em sentimentos de medo misturado com ódio, típico de uma sociedade profundamente desigual; de outro, uma política fundamentada na inteligência, na asfixia da capacidade financeira das organizações criminosas e no total respeito ao devido processo legal.
Mais de 100 mortos em um único dia
Na terça-feira (28), o Rio de Janeiro viveu a operação policial mais letal de sua história. A Operação Contenção mobilizou 2,5 mil agentes, 32 blindados e helicópteros para cumprir cerca de 100 mandados de prisão nos complexos do Alemão e da Penha. O resultado foi catastrófico: 119 mortos até o momento, sendo 115 civis e quatro policiais, além de 113 prisões.
Moradores encontraram dezenas de corpos abandonados na mata e os levaram até a Praça da Penha, em busca de reconhecimento e respostas.
Durante a operação, escolas fecharam, postos de saúde suspenderam atendimentos, mais de 100 linhas de ônibus foram alteradas e a cidade parou. Três inocentes foram feridos por balas perdidas. Movimentos sociais e defensores de direitos humanos classificaram a ação como uma chacina que descumpriu a ADPF 635, decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que estabelece medidas indispensáveis para operações policiais no Rio.
Zero mortes, bilhões bloqueados
Em contraponto, em agosto, outra megaoperação sacudiu o país, mas de forma completamente distinta. A Operação Carbono Oculto mobilizou 1,4 mil agentes em oito estados para desarticular o esquema financeiro do Primeiro Comando da Capital (PCC) no setor de combustíveis. O resultado: nenhuma morte, R$ 7,6 bilhões em impostos sonegados descobertos e R$ 3,2 bilhões em bens bloqueados.
A investigação, fruto da cooperação entre Ministério Público, Receita Federal, Polícia Federal e Agência Nacional do Petróleo, revelou que o PCC movimentou R$ 52 bilhões entre 2020 e 2024 através de aproximadamente mil postos de combustíveis. Entre os bens bloqueados estão um terminal portuário, quatro usinas de álcool, 1,6 mil caminhões, mais de 100 imóveis e participação em 40 fundos de investimento na Faria Lima.
A operação atingiu não apenas traficantes, mas empresários, gestores de fundos e uma complexa rede de corrupção no setor formal da economia.
O ministro da Justiça Ricardo Lewandowski classificou a Operação Carbono Oculto como “a maior da história contra o crime organizado” por atacar a atuação das facções no mercado legal e no sistema financeiro. E o fez sem disparar um único tiro, sem fechar escolas, sem transformar comunidades em zonas de guerra.
Dois projetos de país
As diferenças entre essas operações não são apenas técnicas ou metodológicas – são políticas e ideológicas. A direita brasileira, especialmente em estados como o Rio de Janeiro, continua apostando em uma política de segurança pública que privilegia o confronto armado, a retomada territorial pela força e a lógica do “bandido bom é bandido morto”. Essa abordagem alimenta-se de um sentimento de medo e ódio que é produto direto da desigualdade abissal que marca nossa sociedade.
Essa política ignora um fato fundamental: as organizações criminosas hoje são corporações sofisticadas, com estruturas financeiras complexas, infiltradas profundamente na economia formal. O Comando Vermelho, alvo da operação no Rio, movimentou R$ 6 bilhões em um ano através de fintechs ilegais e bancos digitais clandestinos, inclusive com ligações diretas com o PCC. Matar 119 pessoas não desmantelou essa estrutura financeira – apenas gerou mais corpos, mais dor e mais trauma social.
A esquerda, por outro lado, tem defendido consistentemente uma política de segurança pública baseada na inteligência investigativa, no combate à lavagem de dinheiro, na asfixia financeira das organizações criminosas e no respeito absoluto ao devido processo legal.
A Operação Carbono Oculto é prova de que esse modelo funciona – e funciona melhor, com menos mortes, mais efetividade e resultados duradouros.
Escolha que o Brasil precisa fazer
O debate sobre segurança pública no Brasil chegou a um ponto de inflexão. Não se trata mais de discutir se a esquerda tem ou não um projeto para a área – ela tem, e ele se mostrou superior em eficácia e humanidade. O que está em jogo agora é uma escolha coletiva: queremos medir o sucesso da segurança pública pelo número de corpos enfileirados em praças públicas ou pela capacidade do Estado de desarticular as estruturas financeiras que sustentam o crime organizado?
A Operação Contenção superou o massacre do Carandiru em número de mortos. Enquanto isso, a Operação Carbono Oculto bloqueou bilhões, desarticulou esquemas sofisticados de sonegação e lavagem de dinheiro, e demonstrou que é possível enfrentar as facções sem transformar favelas em campos de batalha.
A direita continuará defendendo a política da violência porque ela alimenta seu projeto político baseado no medo, na punição e na perpetuação das desigualdades. Cabe à esquerda e aos movimentos progressistas apresentar e defender, sem hesitação, a alternativa: segurança pública com inteligência, investigação, respeito aos direitos humanos e ataque ao que realmente sustenta o crime organizado – o dinheiro.
As duas operações contam histórias diferentes sobre qual país queremos ser. A escolha está diante de nós.
*Gabriel Elias é doutor em Ciência Política pela Universidade de Brasília (UnB).
Fonte: Brasil de Fato | Edição: Clivia Mesquita/Brasil de Fato | Foto: Fernando Frazão/Ag Brasil