por Jorge Folena*
A imprensa noticiou que o ministro da Casa Civil, Rui Costa, voltou atrás e negou “intervenções nos preços dos alimentos no Brasil”; também foi dito que “o presidente Lula solicitou que reforce de forma enfática a posição do governo: nenhuma medida heterodoxa será adotada para conter os preços dos alimentos”.
Se o governo não intervir contra os atravessadores e especuladores, que conduzem ao aumento exagerado no preço dos alimentos, quem o fará?
Um dos mais caros dogmas do neoliberalismo é a não intervenção do poder público na economia, deixando o mercado agir e se regular livremente.
Contudo, a liberdade econômica exagerada tem acarretado vários problemas para a sociedade, em particular para a classe trabalhadora, que está cada vez mais pobre e tem arcado com os prejuízos e danos gerados pelo mercado, em sua atuação livre de fiscalização pelo poder público.
O maior exemplo disso foi a crise financeira de 2008, causada principalmente pela manipulação de empréstimos imobiliários nos Estados Unidos, que levou à falência de grandes empresas e causou recessão em muitos países, levando ao desaparecimento de muitos postos de trabalho.
No país símbolo do capitalismo, esse episódio levou agricultores a perderem suas terras para os bancos, enquanto famílias perderam o teto sobre suas cabeças. Como resultado da ausência de fiscalização da atividade econômica pelo Estado, vidas foram destruídas e pessoas entregues à própria sorte.
Atualmente, uma questão que vem dificultando a vida de grande parte da população brasileira é o preço dos alimentos em geral, e em especial dos que compõem a cesta básica, que sobem cada vez mais, atrapalhando os esforços do governo no combate à insegurança alimentar e na luta pela retirada do Brasil do mapa da fome.
No passado, particularmente quanto à proteção da população em caso de desabastecimento e aumentos abusivos de preços dos alimentos, tínhamos no Brasil a Lei Delegada nº 04, de 1962, sancionada pelo presidente João Goulart. Esta lei era importantíssima para permitir o governo atuar em caso de desabastecimento e aumentos exagerados nos preços de alimentos, item essencial a todos seres vivos.
Porém, mesmo a Constituição de 1988 autorizando o poder público a intervir na ordem econômica para garantir a segurança nacional e o interesse coletivo, no governo Bolsonaro a mencionada norma foi revogada pela lei da liberdade econômica, marco jurídico do neoliberalismo.
Por meio da Medida Provisória 881/2019 (que “instituiu a declaração de liberdade econômica”), convertida na Lei 13.874/2019, Bolsonaro revogou a importantíssima Lei Delegada nº 4, de 1962, que dispunha “sobre a intervenção no domínio econômico para assegurar a livre distribuição de produtos necessários ao consumo do povo”.
Segundo a medida legislativa apresentada por Bolsonaro e encampada pela maioria do Parlamento, o Poder Público não deve intervir na ordem econômica.
Considero que o primeiro ato de governo do presidente Lula, em 1º de janeiro de 2023, deveria ter sido a revogação da referida lei da liberdade econômica, marco econômico do governo fascista anterior, o que poderia ser feito por meio de uma medida provisória em que se restabeleceriam as normas da antiga Lei Delegada 4/62, adaptada para a atual ordem constitucional, principalmente para evitar o que está ocorrendo com os abusos nos preços de alimentos e outros produtos essenciais à classe trabalhadora.
Vale ressaltar que a Constituição estabelece que o Estado atuará “como agente normativo e regulador da atividade econômica”. Sendo assim, a Constituição não exclui a intervenção do Poder Público na economia. Tanto é que o Estado não está impedido sequer de participar diretamente dos empreendimentos econômicos, podendo fazê-lo desde que estejam relacionados à segurança nacional e ao interesse coletivo.
Ora, se o Estado tem a prerrogativa de agir como empreendedor, tem mais ainda o comando constitucional para intervir na economia nos casos de relevante interesse coletivo e para a preservação da soberania nacional, principalmente nos assuntos relacionados “à livre circulação de mercadorias e serviços essenciais ao consumo e uso do povo”, como dispunha a Lei Delegada nº 4/62.
Com efeito, a Constituição consagra a livre iniciativa, mas isso não significa que o Estado não possa intervir na ordem econômica como defendeu o governo de Bolsonaro, uma vez que existem princípios fundamentais que devem nortear a sociedade brasileira, como a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho, a solidariedade, a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais, princípios fundamentais aos quais todo e qualquer mandatário está obrigado, a partir do momento em que toma posse do cargo.
Por isto, não pode o governo renunciar ao seu dever de agente fiscalizador e normatizador, determinado na Constituição, que lhe impõe o dever de agir para garantir e proteger a população, que é a base e a sustentação legítima do Estado brasileiro.
A esse respeito, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que:
“É certo que a ordem econômica na Constituição de 1988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. Muito ao contrário. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3 º e 170. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da “iniciativa do Estado”; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa.” (ADI 3.512-ES)
Assim, a livre iniciativa não é absoluta nem as empresas estão acima da sociedade, não podendo dispor de total liberdade econômica para fazerem que o bem entendem e especular com o preço dos alimentos.
Por isso, o Poder Público está legitimado constitucionalmente a intervir na economia em situações especiais, para controlar o preço abusivo de alimentos e outros itens necessários à existência digna da sociedade, a fim de evitar situações vivenciadas no passado, em que foi empregada a manipulação de preços, a destruição e o desperdício doloso de alimentos, a sonegação combinada de gêneros e produtos etc.
A Lei Delegada, sancionada pelo Presidente João Goulart em 1962, era instrumento extremamente atual e necessário, sob o enfoque humano e solidário, particularmente no que toca à proteção ao trabalho, base de tudo. Na verdade, a quem interessou, então, sua revogação, como fez o governo Bolsonaro? Para responder a essa indagação, valho-me das palavras do Presidente João Goulart em seu último discurso, proferido na Central do Brasil em 13 de março de 1964:
“A democracia que eles desejam impingir-nos é a democracia antipovo, do antissindicato, da antirreforma, ou seja, aquela que melhor serve ao grupo que eles servem e representam: a democracia dos monopólios privados nacionais e internacionais.”
Assim, reafirmo que, nos casos em que o interesse coletivo está em jogo, o Poder Público está autorizado pela Constituição a intervir na ordem econômica para evitar abusos, como o aumento exagerado de preço dos alimentos, não devendo ter o governo do presidente Lula qualquer receio em fazer, caso necessário.
Vale esclarecer que a intervenção pode se dar de várias maneiras, seja por meio de importações de produtos, diminuição de tributos, direcionamento de fiscalização, tabelamento de preço, concessão de subsídios, criação de empresas públicas etc.
Para isto, não se pode ter medo do mercado nem ficar recuado em relação a ele, pois, ao final, quem será cobrado é o governo do presidente Lula, se os alimentos continuarem a subir, e não os agentes do mercado que manipulam os preços dos produtos essenciais.
É importante lembrar que o governo do presidente Lula está sob ataque desde o primeiro dia e que os prepostos do mercado farão de tudo para sabotar qualquer coisa boa que o governo realizar, a exemplo do que fizeram no final do primeiro governo da presidenta Dilma Rousseff, quando, a partir de julho de 2014, iniciaram um lockout para prejudicar a sua reeleição.
* Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ, Jorge também coordena e apresenta o programa Soberania em Debate, do movimento SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil