COLUNISTAS
Fonte: Brasil de Fato, publicado em 2 de janeiro de 2023
Vijay Prashad*
Queridas amigas e amigos
Saudações do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
O Relatório Global de Salários 2022–23 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) acompanha o terrível colapso dos salários reais de bilhões de pessoas em todo o planeta. A enorme distância de renda entre os 99% da população mundial e os 1% de bilionários e quase trilionários é assustadora. Durante a pandemia, quando a maior parte do mundo sofreu uma perda dramática em seus meios de subsistência, os dez homens mais ricos do mundo dobraram suas fortunas. Essa extrema desigualdade de renda, agora totalmente normal em nosso mundo, produziu imensas e perigosas consequências sociais.
Se você caminhar por qualquer cidade do planeta, não apenas nas nações mais pobres, encontrará aglomerados cada vez maiores de moradias tomadas pela miséria. Elas têm muitos nomes: favelas, bastis, bidonville, daldogneh,gecekondu, kampung kumuh, slums, Sodoma e Gomorra. Nesses territórios, bilhões de pessoas lutam para sobreviver em condições desnecessárias em nossa era de enorme riqueza social e tecnologia inovadora. Mas os quase trilionários se apoderam dessa riqueza social e prolongam sua greve fiscal de meio século contra os governos, que paralisa as finanças públicas e impõe austeridade permanente à classe trabalhadora. O aperto constritivo da austeridade define o mundo dos bastis e das favelas, pois as pessoas lutam constantemente para superar as persistentes mazelas da fome e da pobreza, uma quase ausência de água potável e sistemas de esgoto e uma vergonhosa falta de educação e assistência médica. Nessas bidonvilles, as pessoas são forçadas a criar novas formas de sobrevivência cotidiana e novas formas de acreditar em um futuro para si mesmas neste planeta.
Essas formas de sobrevivência cotidiana podem ser vistas nas organizações de autoajuda – quase sempre dirigidas por mulheres – que existem nos ambientes mais inóspitos, como dentro da maior favela da África, Kibera (Nairóbi, Quênia), ou em ambientes apoiados por governos com poucos recursos naturais, como na Comuna de Altos de Lídice (Caracas, Venezuela). O Estado de Austeridade no mundo capitalista abandonou seu dever elementar de prover auxílio, com organizações não-governamentais e instituições de caridade fornecendo band-aids necessários, mas insuficientes, para sociedades sob imenso estresse.
Não muito longe das instituições de caridade, existe um elemento persistente no planeta das favelas: crime organizado, verdadeiras agências de emprego do sofrimento. Esses grupos criminosos reúnem os elementos mais aflitos da sociedade – principalmente homens – para gerenciar uma série de atividades ilegais (drogas, tráfico sexual, esquemas de proteção, jogos de azar). De Ciudad Nezahualcoyotl (Cidade do México, México) a Khayelitsha (Cidade do Cabo, África do Sul) e Orangi Town (Karachi, Paquistão), a presença de criminosos empobrecidos, de pequenos ladrões ou malandros, a poderosos chefes de gangues, é onipresente. No Rio de Janeiro, Brasil, os moradores da favela de Antares chamam a entrada de seu bairro de “boca”, locais por onde se alimentam as favelas de drogas que são então comercializadas.
Neste contexto de imensa pobreza e fragmentação social, as pessoas recorrem a diferentes tipos de religiões populares em busca de alívio. Há razões práticas para essa mudança, é claro, uma vez que igrejas, mesquitas e templos fornecem alimentação e educação, bem como locais para reuniões comunitárias e atividades para crianças. Onde o Estado aparece principalmente na forma de polícia, os pobres urbanos preferem se refugiar em organizações de caridade que estão frequentemente ligadas de uma forma ou de outra a ordens religiosas. Mas essas instituições não atraem as pessoas apenas com refeições quentes ou canções ao entardecer; há um fascínio espiritual que não deve ser minimizado.
Nossas pesquisadoras no Brasil têm estudado o movimento pentecostal nos últimos anos, realizando pesquisas etnográficas em todo o país para entender o apelo dessa denominação em rápido crescimento. O pentecostalismo, uma forma de cristianismo evangélico, emergiu como um local de preocupação porque começou a moldar a consciência dos pobres urbanos e da classe trabalhadora em muitos países, com ideias tradicionalistas, e tem sido fundamental nos esforços para transformar essas populações em base da Nova Direita. O dossiê n. 59, Fundamentalismo e imperialismo na América Latina: ação e resistência (dezembro de 2022), fruto da investigação e escrito por Delana Cristina Corazza e Angélica Tostes, sintetiza a pesquisa do grupo de trabalho do escritório do Brasil do Instituto Tricontinental sobre os evangélicos, política e organização popular. O texto mapeia a ascensão do movimento pentecostal no contexto da virada neoliberal na América Latina e oferece uma análise minuciosa do porquê essas novas tradições de fé surgiram e por que elas se encaixam tão elegantemente com setores da Nova Direita (incluindo, no caso do Brasil, com as políticas de Jair Bolsonaro e do bolsonarismo).
No século 19, um jovem Karl Marx capturou a essência do desejo religioso entre os oprimidos: “O sofrimento religioso”, escreveu ele, “é, ao mesmo tempo, a expressão do sofrimento real e um protesto contra o sofrimento real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração e a alma de condições desalmadas. É o ópio do povo”. É equivocado supor que a virada para formas de religião é apenas sobre a necessidade desesperada por bens que o Estado de Austeridade não está disposto a fornecer. Há mais em jogo aqui, muito mais do que o pentecostalismo, que chamou nossa atenção, mas que não está sozinho em seu trabalho nas favelas habitadas pelos pobres urbanos. Tendências semelhantes ao pentecostalismo são visíveis em sociedades dominadas por outras tradições religiosas. Por exemplo, os da’wa [pregadores] do mundo árabe, como o televangelista egípcio Amr Khaled, fornecem um tipo de bálsamo semelhante, enquanto na Índia, a Art of Living Foundation e uma série de pequenos sadhus [homens santos] junto com o movimento Tablighi Jamaat [Sociedade para Espalhar a Fé] fornecem seu próprio consolo.
O que une essas forças sociais é que elas não se concentram na escatologia, na preocupação com a morte e o julgamento que rege as tradições religiosas mais antigas. Essas novas formas religiosas são voltadas para a vida e para o viver (“Eu sou a ressurreição e a vida”, de João 11:25, é uma das prediletas dos pentecostais). Viver é viver neste mundo, buscar fortuna e fama, adotar todas as ambições de uma sociedade neoliberal na religião, rezar não para salvar a própria alma, mas por uma alta taxa de retorno. Essa atitude é chamada de Evangelho da Vida ou Evangelho da Prosperidade, cuja essência é captada nas perguntas de Amr Khaled: “Como podemos transformar todas as 24 horas em lucro e energia? Como podemos investir as 24 horas da melhor maneira?”. A resposta é através do trabalho produtivo e da oração, uma combinação que a geógrafa Mona Atia chama de “neoliberalismo piedoso”.
Em meio ao desespero da grande pobreza no Estado de Austeridade, essas novas tradições religiosas fornecem uma forma de esperança, um evangelho da prosperidade que sugere que Deus quer aqueles que lutam para ganhar riqueza neste mundo e que mede a salvação não em termos da graça divina no vida após a morte, mas no saldo atual da conta bancária. Através da apreensão afetiva da esperança, essas instituições religiosas, em geral, promovem ideais sociais profundamente conservadores e odiosos em relação ao progresso (particularmente em relação aos LGBTQIA+ e aos direitos das mulheres e à liberdade sexual).
Nosso dossiê, uma abertura para entender o surgimento dessa gama de instituições religiosas no mundo dos pobres urbanos, ponta para essa tomada da esperança de bilhões de pessoas:
“Os desafios da construção de sonhos e de um futuro nos provoca a necessidade de criarmos uma esperança que pode de fato ser vivenciada de forma cotidiana. É também nossa tarefa resgatar nossa história e fazer com que a luta por direitos sociais seja traduzida em organização popular a partir de espaços de formação e compreensão da realidade, sem deixar de compreender as novas linguagens e possibilitar vivências de solidariedade coletiva, lazer e festa. Nesses esforços, é importante que não negligenciemos ou descartemos novas ou diferentes formas de interpretar o mundo, como por meio da religião, mas sim promover um diálogo aberto e respeitoso entre elas para construir unidade em torno de valores progressistas compartilhados.”
Este é um convite para uma conversa e uma práxis em torno da esperança da classe trabalhadora que está enraizada nas lutas para transcender o Estado de Austeridade, em vez de se render a ele como faz o “neoliberalismo piedoso”.
Em fevereiro de 2013, Jabhat al-Nusra, afiliado da Al-Qaeda na Síria, foi à cidade de Maarat al-Nu’man e decapitou uma estátua de 70 anos do poeta do século 11 Abu al-Alaa al-Ma’ arri. O velho poeta os irritou porque muitas vezes é considerado ateu, embora, na verdade, fosse principalmente anticlerical. Em seu livro Luzum ma la yalzam, al-Ma’arri escreveu sobre as “ruínas em ruínas dos credos” nas quais um batedor cavalgava e cantava: “O pasto aqui está cheio de ervas daninhas”. “Entre nós, a falsidade é proclamada em voz alta”, escreveu ele, “mas a verdade é sussurrada… Ao Correto e a Razão são negados uma mortalha”. Não é à toa que os jovens terroristas – inspirados por seu próprio evangelho da certeza – decapitaram a estátua feita pelo escultor sírio Fathi Mohammed. Eles não podiam suportar o pensamento da humanidade resplandecente.
Cordialmente,
Vijay.
*Vijay Prashad é historiador e jornalista indiano, diretor geral do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social.
**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Foto: GreatInca/Wikicommons