A segurança pública no Brasil atravessa uma crise profunda e multifacetada, marcada pela escalada da violência, o fortalecimento do crime organizado e a sensação generalizada de insegurança. Fenômenos como roubos, violência doméstica e, principalmente, a expansão de facções criminosas e milícias, desafiam o Estado e clamam por respostas estruturais. Nesse contexto complexo, o governo federal apresentou ao Congresso Nacional, em 23 de abril de 2025, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 18/2025.
A segurança pública, tema que mais preocupa a população brasileira, segundo pesquisas recentes, foi a pauta do Soberania em Debate de 24 de abril. Apenas um dia após a entrega do texto da PEC ao Congresso pelo presidente Lula, o programa do projeto SOS Brasil Soberano, apresentado pela jornalista Beth Costa e pelo advogado Jorge Folena, recebeu a cientista social Silvia Ramos, doutora em Violência e Saúde pela Fundação Oswaldo Cruz.
Atua em pesquisas sobre violência urbana e segurança pública. É uma das fundadoras do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, o CESEC, há 25 anos. Há seis, coordena a Rede de Observatórios da Segurança, que monitora indicadores de violência em nove estados do Brasil, em parceria com centros de pesquisa e organizações locais, divulgando resultados de pesquisas e ajudando a formar pesquisadores e ativistas no campo de estudos da segurança e criminalidade.
Um sistema fragmentado diante do crime organizado
Para compreender a urgência e a relevância da PEC 18/2025, é fundamental analisar o panorama atual da segurança pública no Brasil. O sistema vigente, herdado em grande parte de estruturas que remontam a períodos anteriores à redemocratização, opera de forma fragmentada. A lei, que deveria ser o pilar da convivência social, é frequentemente desafiada. O aparato estatal responsável por prevenir, reprimir e punir o descumprimento das leis – o sistema de justiça criminal – inicia-se na figura do policial, o primeiro elo dessa cadeia. Contudo, a ação policial é apenas o começo de um longo percurso que envolve delegacias, Ministério Público, Poder Judiciário e, por fim, o sistema penitenciário. Cada etapa representa um sistema distinto, e a falta de articulação entre eles é um dos nós da segurança.

Quando esse complexo sistema falha ou opera de maneira descoordenada, diversos fenômenos criminais se agravam. Silvia destaca que o roubo de celulares e a violência doméstica são apenas a ponta do iceberg. Na última década, assistiu-se a uma escalada sem precedentes do crime organizado. “Facções historicamente associadas ao tráfico de drogas, como o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), expandiram suas operações e influência. Simultaneamente, um fenômeno ainda mais recente e alarmante ganhou força, especialmente nos últimos cinco anos: as milícias”. Originadas frequentemente da cooptação ou participação de agentes de segurança do Estado, esses grupos passaram a controlar territórios e explorar uma vasta gama de atividades econômicas ilegais.
“O que antes se concentrava nas favelas do Rio de Janeiro ou São Paulo, hoje se espalha pelo interior dos estados e alcança regiões distantes, como o Norte e o Nordeste. Municípios como Angra dos Reis, Campos dos Goytacazes, Volta Redonda e Resende, no estado do Rio, tornaram-se palco dessa interiorização. As facções, muitas vezes adotando táticas milicianas, passaram a impor taxas de segurança a moradores e comerciantes, controlar a venda de gás, o acesso à internet e até o fornecimento de água, diversificando suas fontes de renda para além do tráfico de drogas. O PCC, que tradicionalmente não exercia controle territorial ostensivo em São Paulo, replica essas práticas em outros estados. A linha que separava traficantes de milicianos não existe mais”, destaca a pesquisadora que há seis anos coordena a Rede de Observatórios da Segurança, que monitora indicadores de violência em nove estados do Brasil, em parceria com centros de pesquisa e organizações locais.

Políticas de segurança pública equivocadas, como a chamada “guerra às drogas”, baseada no confronto direto e em operações de grande ostensividade, mas pouca inteligência, são apontadas por Silvia como fatores que contribuíram para o fortalecimento desses grupos. O modelo reativo, simbolizado por tropas de elite como o BOPE no Rio de Janeiro, foi exportado para outras unidades da federação, aprofundando a violência e a letalidade policial, sem resolver a questão estrutural do crime.
Ela destaca que a infiltração do crime nas próprias instituições policiais, gerando as milícias, representa, como alertam manuais internacionais, o maior perigo, criando um “monstro dentro de casa” e levando à perda de controle pelo Estado.A violência policial, marcada por um profundo viés racista – 87% dos mortos pela polícia são negros, segundo dados apresentados pela pesquisdora –, não é exclusividade de governos de uma ou outra orientação ideológica.
“Embora governos de extrema-direita tendam a empoderar as polícias, resultando em aumento da violência, o problema persiste mesmo em estados governados pela esquerda, como o caso da Bahia. Trata-se de um problema nacional, um legado não enfrentado adequadamente pela Constituição de 1988, que, apesar de varrer entulhos autoritários em diversas áreas, manteve a estrutura da segurança pública praticamente intocada”, aponta Silvia.
Um acerto de contas histórico – e tardio
A Proposta de Emenda à Constituição 18/2025 surge como uma tentativa de enfrentar essa herança e promover um “acerto de contas” com o passado, explica a cientista social. Trinta e seis anos após a promulgação da Constituição Cidadã, que evitou tocar na espinhosa questão da estrutura de segurança pública, a PEC busca finalmente modernizar e integrar o sistema.
Embora seja uma medida tardia e potencialmente menos ambiciosa que planos anteriores – como o Plano Nacional de Segurança Pública proposto por Luiz Eduardo Soares em 2003 ou o PRONASCI de 2007 –, a PEC 18/2025 representa um passo significativo.
Entre os destaques da proposta, Silvia destaca o fortalecimento do papel da União, da ampliação de competências da Polícia Federal, a criação da Polícia Viária Federal, que substituirá a atual Polícia Rodoviária Federal (PRF). “A PRF deveria ser estudada pelo mundo todo para entender como destruir um corpo policial em 4 anos”, comentou Silvia.
A convidada do Soberania em Debate destacou que, embora represente um marco simbólico importante, a PEC não traz uma panacéia. “A transformação da segurança pública brasileira exige mais do que mudanças legais; demanda uma profunda revisão de culturas institucionais, investimentos consistentes em inteligência e tecnologia, valorização profissional, controle rigoroso da atividade policial e, acima de tudo, um compromisso com políticas de prevenção social que atuem nas causas estruturais da violência e da criminalidade. O debate no Congresso Nacional será crucial, e a sociedade civil tem o papel fundamental de acompanhar de perto a tramitação, pressionar por avanços e fiscalizar a futura implementação das medidas. Somente com um engajamento amplo e uma visão estratégica de longo prazo será possível começar a reverter o quadro atual e construir um Brasil mais seguro para todos”, finalizou.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social e advogado Jorge Folena, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra.
O programa também pode ser assistido pela TVT, Canal do Conde, e é transmitido pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.
Texto: Rodrigo Mariano | Foto em destaque: Paulo Pinto/Agência Brasil, vencedor do prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos com esta foto.