Pele alvo: o avanço descontrolado do encarceramento e das mortes de pessoas negras vítimas do Estado

Em 2022, 87,35% das mortes decorrentes de ações policiais no Brasil foram de pessoas pretas e pardas


A violência cotidiana instalada nas grandes cidades brasileiras não é algo novo. Ela se estende por décadas no Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, nas capitais, e mesmo nas cidades menores, gerada por uma guerra às drogas datada, falida e ineficiente que resulta em vítimas letais. No fogo cruzado, cidadãos e cidadãs, principalmente aqueles e aquelas que moram nas favelas e periferias, são vítimas recorrentes. Morrer voltando da escola, indo à padaria, saindo para o trabalho ou em deslocamento entre compromissos, é tratado como algo comum, desde que não aconteça em bairros nobres.

O que pode parecer um efeito colateral de ações policiais é, na verdade, resultado de uma cultura cristalizada nas corporações, com fortes raízes fincadas no racismo estrutural construído no país desde o período escravocrata. As balas têm alvo certo. E esses alvos têm cor de pele específica. É o que aponta os dados do relatório “Pele Alvo: a bala não erra o negro”, apresentado pela Rede de Observatórios de Segurança.

O Soberania em Debate de 23 de novembro recebeu a cientista social Silvia Ramos, coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança. Doutora em Violência e Saúde pela Fiocruz, ela apresentou os números alarmantes levantados pelo estudo. O relatório aponta que, em apenas um ano, a polícia do Rio de Janeiro matou 1330 pessoas. Foi ultrapassada apenas pela polícia da Bahia, que interrompeu a vida de 1464 pessoas.

Os dados coletados – apesar das muitas dificuldades de acesso – ilustram o absurdo: os Estados Unidos, um país de 350 milhões de habitantes, com uma polícia considerada entre as mais violentas do mundo, matou, em 2022, um terço do que a polícia do Rio de Janeiro, que tem 17 milhões de habitantes. “É uma doença do nosso país. Em um ano, o Brasil matou mais de 6 mil pessoas. Temos os maiores índices de letalidade policial do mundo”, destaca Silvia.

 

 

Alvos de um Estado ineficiente

Em todos os estados onde os dados da pesquisa foram coletados – Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro e São Paulo -, por mais diversas que sejam as características da criminalidade em cada um deles, as mortes produzidas pelas polícias compartilham um mesmo modelo: o de jovens negros das periferias.

“É nas periferias que as polícias excedem o uso da força. A violência letal é a ponta do iceberg. As mortes são contabilizáveis, mas onde há um agente da lei produzindo uma morte, há diversas outras violências, brutalidades, humilhações e outras dinâmicas violentas acontecendo todos os dias”, aponta Silvia.

A pesquisa aponta que, para os policiais, a cor da pele e a idade são determinantes na hora de atirar. Mais de 40% dos mortos são jovens com menos de 24 anos, muitos deles na faixa até 17 anos de idade. São mortes naturalizadas, números que se sucedem nos noticiários sem causar grande comoção. “É nos jovens negros que as corporações policiais atiram apressadamente, equivocadamente, excessivamente. O mesmo jamais aconteceria com jovens brancos, ainda que estivessem cometendo crimes, vendendo drogas em uma escola de Elite em bairros nobres”, aponta a pesquisadora, e completa: “os números são alarmantes. O Rio tem mais de mil mortes por dia, há mais de 10 anos. Quando viajo para o exterior e mostro esses números para especialistas e agentes de segurança, eles não conseguem acreditar”, relata.

 

Modelo de policiamento falido

Ponto pacifico entre especialistas na área da segurança pública, a letalidade policial está fundada em estratégias ineficientes de combate ao crime e no racismo. As mudanças, no entanto, não acontecem. Neste modelo arcaico, a mesma polícia são duas: um agente público, no mesmo dia e no mesmo lugar, a depender da cor do observador pode gerar a sensação de “estou protegido” ou “serei abordado”.

“Conseguimos introduzir o ensino sobre as matrizes africanas nas escolas, a história brasileira não contada pelos colonizadores. Na saúde, na assistência social, avançamos minimamente. Mas, na área da segurança pública, seguimos muito atrasados. Temos as mesmas políticas de segurança que tínhamos há 30, 40 anos. Ela mantém intactas estruturas anteriores à constituição. A Polícia Militar, totalmente militarizada, imagina o policial como um robô, com capacete, bota, vários coletes, com fuzil na mão, enfrentando o crime a bala. No mundo todo, o modelo da polícia que dá certo é o de um cara de calça jeans, camisa polo e tênis atrás de um computador. É com inteligência. Esse modelo segue inalterado, inclusive em governos de esquerda. As polícias colocam o pé na porta, emparedam os governadores, às vezes, até o presidente da República e o ministro da Justiça. Quando os gestores tentam aplicar mudanças, enfrentam uma cultura corporativa policial muito forte e institucionalizada”, explica Ramos.

Resultado direto da ação do Estado  – já quase sem o controle de seus mandatários eleitos – o crime, além de não diminuir efetivamente, se expande para novos territórios.

“Nós exportamos esse modelo que não deu certo e alimentamos o superencarceramento. A Polícia Militar, proibida de investigar, precisa apresentar serviço. Ela sai recolhendo meninos negros que têm o perfil ‘suspeito’ e prendem. No sistema prisional, eles fazem uma pós-graduação no crime e já saem batizados. Voltam para as suas áreas levando uma facção e dizem ‘agora, aqui é CV’. Só que os garotos da comunidade do lado foram para outra cadeia, onde a facção era o PCC. E está aí a violência. Hoje você encontra quilombos, terras indígenas, comunidades de agricultura tradicional, com paredes pichadas com iniciais de facções criminosas”, destaca a pesquisadora.

 

Reforço federal

Silvia também critica a utilização da Lei de Garantia da Lei e da Ordem – GLOs como solução para controlar momentos de crise na segurança pública. O Rio de Janeiro tem trágicas experiências produzidas por intervenções federais na segurança da cidade; períodos em que agentes públicos treinados para a guerra, em uma lógica de defesa contra um inimigo, são colocados dentro das grandes cidades para lidar com cidadãos e cidadãs com direitos a serem respeitados, criminosos ou não.

Silvia conta que o título do relatório, criado por uma equipe composta 70% por pesquisadores negros, presta homenagem a uma música de Emicida, que distingue “pele alva” de “pele alvo”. A canção fala sobre o adoecimento físico e psíquico da juventude negra e lembra o assassinato de um músico, em um carro com toda a família, fuzilado “por engano” com 80 tiros disparados por 12 militares em patrulha na Vila Militar, em Guadalupe, Rio de Janeiro. Evaldo Rosa dos Santos levava a família para um chá de bebê. Luciano Macedo, baleado ao tentar ajudar as vítimas, também morreu. A esposa, o filho de 7 anos e uma amiga da família, que também estavam no carro, não sofreram ferimentos físicos.

“Aquela GLO não reduziu em nada a violência letal. A violência policial aumentou, a violência patrimonial ficou a mesma. Caiu um pouco o roubo de carga. O exército nas ruas é um reforço policial, é mais força, mais metralhadoras e fuzis. Nós achamos que as soluções para os problemas de segurança pública são várias, mas não passam por mais força, mais tiroteios, mais confrontos e mais mortos. Passam por mais inteligência, investigações, políticas de longo prazo. Quantos anos mais vamos achar que combatemos a criminalidade combatendo o varejo das drogas, na ponta, nas favelas e periferias, e não os fornecedores e redes de abastecimento, principalmente de armas?”, finaliza.

 

O programa Soberania em Debate é um projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro – Senge RJ, transmitido ao vivo, pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa e do cientista social Jorge Folena e assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lígia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais de Ana Terra.

O programa também pode ser assistido na TVT aos sábados, às 17h e à meia noite de domingo.

Para acessar o relatório Pele Alvo: a bala não erra o negro, clique aqui.
Para conferir o programa na íntegra, clique aqui.

 

Texto: Rodrigo Mariano
Fotos: Rafael Martins/GOVBA/Fotos Públicas (em destaque) e Marcello Casal Jr/Agência Brasil e Arquivo/Agência Brasil

 

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