As estatais brasileiras têm um papel chave na recuperação da economia e do desenvolvimento nacional, ressalta Nota Técnica produzida pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), que faz uma radiografia das empresas controladas pelo Estado no Brasil. Entre outras medidas com forte impacto na geração de empregos, o documento sugere a implementação de uma política de fortalecimento dos bancos públicos para democratização da oferta de crédito, e para financiar um amplo programa de energias limpas, visando à transição de matriz energética do país.
Segundo o Dieese, as estatais federais estão vocacionadas para coordenar esse programa, porque 95% dos ativos do setor produtivo controlados pelo Estado, a nível federal, estão concentrados exatamente no setor de energia, nos grupos Petrobras e Eletrobras. Além disso, o Estado conta com empresas relevantes nas áreas de pesquisa e planejamento, como a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), e a Eletrobras opera ativos estratégicos para a transição energética, como as linhas de transmissão de energia elétrica e os reservatórios hidrelétricos, que poderiam funcionar como potenciais “baterias” para assegurar estabilidade ao sistema, no uso de fontes intermitentes (como a energia eólica).
“Neste momento de aguda crise sanitária e socioeconômica em escala global, as estatais podem, também, fazer parte de um esforço de recuperação e desenvolvimento nacional”, diz a Nota Técnica.“Em diversos países, Estados nacionais vêm lançando pacotes bilionários de incentivo e apoio ao setor privado, e as estatais brasileiras podem – e devem – participar deste processo.”
O debate sobre a transição energética, na direção de uma economia de baixo carbono, ganhou impulso com a pandemia de covid-19. “Além de fundamental para o enfrentamento da crise ambiental mundial, pode ser de grande importância para a recuperação da atividade econômica”, afirmam os técnicos do Dieese. Citam, por exemplo, estudo da Agência Internacional de Energia (AIE), de 2020, em colaboração com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que estima a criação de 27 milhões de empregos, em três anos, como efeito de um programa internacional de recuperação da economia com foco na sustentabilidade ambiental.
O Dieese acredita que esse esforço de retomada poderia se dar, no Brasil, “por meio da ampliação dos investimentos, induzindo, em consequência, investimentos privados; por meio da expansão do crédito pelos bancos públicos ao capital de giro e à ampliação de capacidade instalada, com impacto também na redução de desigualdades regionais; e, no caso das grandes empresas Petrobras e Eletrobras, por meio da liderança no país do processo de transição energética, já iniciado nos países desenvolvidos.”
O setor produtivo estatal brasileiro, segundo a entidade, é composto por empresas que atuam em energia elétrica, petróleo, gás e derivados, comércio e serviços, indústria de transformação, portuário, tecnologia da informação e outros (inclusive com empresas do grupo Banco do Brasil). De acordo com dados de 2019 da Secretaria de Governança das Empresas Estatais do Ministério da Economia (Sest), levantados pelo Dieese, cinco grupos concentram 96% dos ativos e 93% do patrimônio líquido: Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, BNDES, além de Petrobras e Eletrobras. Os grandes grupos do setor financeiro respondem por 73% dos ativos, enquanto a Petrobras, sozinha, responde por 42% do patrimônio líquido total, informa o Dieese. Do total de empresas, 60% pertencem aos Grupos Petrobras e Eletrobras.
No Plano de Recuperação Econômica da União Europeia, no valor total de 2 trilhões de euros, o principal programa em quantidade de recursos consiste exatamente em apoio financeiro em grande escala a investimentos públicos e reformas para uma recuperação sustentável, em especial em áreas verdes e digitais, com objetivo de tornar as economias dos países da UE mais resilientes e melhor preparadas para o futuro. O Dieese também observa o maior interesse das grandes petroleiras do mundo (estatais e privadas) em adquirir ativos voltados para a produção de energia limpa.
As maiores estatais brasileiras, especialmente Eletrobras, Petrobras e os bancos, têm apresentado elevados valores de geração de caixa e reduzidos níveis de endividamento, mas pago somas vultosas à União a título de dividendos, em detrimento da realização de novos investimentos. Somente em 2019, as cinco maiores empresas estatais federais distribuíram R$ 27,7 bilhões em dividendos totais, sendo cerca de R$ 20 bilhões à União e à BNDESPar.
O Dieese argumenta que o investimento público estatal poderia ser financiado por uma combinação de recursos próprios – inclusive com o não recolhimento de dividendos à União – e de terceiros, seja via endividamento, seja via parcerias produtivas com o setor privado. E também com a participação importante de bancos públicos federais. “Esses investimentos, especialmente em momento tão excepcional como o provocado pela crise do coronavírus, poderiam tanto contribuir decisivamente como estímulo de curto prazo à geração de empregos e renda, como também liderar, no médio e longo prazo, um processo de transformações fundamentais em nossa matriz energética.”
Revalorização global do papel do Estado
Embora necessária, sabe-se que uma mudança na matriz energética, em âmbito nacional ou mundial, envolve complexidade, instabilidade e possibilidade de surgimento de novos riscos e conflitos. O que significa que o Estado terá papel central no seu planejamento, coordenação e implementação.
“O Brasil possui uma das matrizes energéticas mais limpas do planeta e a geografia do país proporciona vantagens comparativas na área de energias renováveis”, argumenta o Dieese. “Paralelamente, a descoberta do pré-sal, com seu elevado volume de reservas e capacidade de produção, vem tornando o país grande exportador de petróleo, o que possibilitaria a aplicação de parte dos recursos gerados com essas exportações em um fundo para financiar a implantação de programa de investimentos direcionados para a substituição das fontes de energia fóssil.”
No entanto, a Nota Técnica reconhece que, “a despeito da enorme vantagem comparativa do Brasil, não há por parte do governo federal proposta alguma de projeto semelhante aos que estão sendo propostos pelos países desenvolvidos. Ao contrário, ao mesmo tempo em que nega os problemas relacionados à crise climática, o governo federal tem adotado uma política de redução dos investimentos nas empresas estatais federais do setor de energia e vem se desfazendo de ativos e empresas estratégicas”.
O trabalho critica, por exemplo, a venda da Petrobras Biocombustíveis, empresa que atua em pesquisa e produção de energia renovável, e a venda, por parte da Eletrobras, do complexo eólico Campos Neutrais, considerado o maior da América Latina.
“Além disso, as empresas estatais têm implementado programas de desligamento de mão de obra qualificada e essencial para o planejamento e a execução de novos projetos”, denuncia o documento do Dieese. “Na contramão do mundo, com o argumento de gerar maior riqueza possível aos acionistas, a Petrobras alega que só investirá em energia renovável quando esta for altamente rentável e puder dominar o setor e o governo federal insiste no projeto de privatização da Eletrobras. Essa política implica enorme risco para o Brasil, tanto pela dependência crescente da exportação de commodities, quanto pela perda do controle da operação da transmissão de energia elétrica e dos grandes reservatórios hidrelétricos, além, evidentemente, de desperdiçar a oportunidade de avançar em pesquisas e desenvolvimento de novas fontes de energia renovável.”
Ou seja, o Brasil tem feito praticamente o oposto que os demais países do mundo, para responder à rise do novo coronavírus. Na maioria das nações, estão sendo implementados programas de transferência de renda e medidas de injeção de liquidez e apoio a setores mais afetados. “Governos alinhados com os mais diversos matizes ideológicos vêm empreendendo enormes pacotes de estímulo em suas economias. Em vários países, ao invés de responderem aos problemas fiscais decorrentes da crise com a venda de suas empresas, os governos têm agido incisivamente no sentido contrário, reforçando-as e até estatizando empresas privadas em dificuldades.”
A atuação do Estado para vencer a crise gerada na pandemia voltou a ser considerada essencial até pelos organismos multilaterais do liberalismo. “Não é nova a compreensão de que as despesas do setor público são capazes de engendrar efeitos positivos significativos sobre o produto e o emprego no curto prazo”, explica a Nota do Dieese. “Trata-se do chamado efeito multiplicador fiscal, em que uma variação das despesas governamentais tende a produzir uma variação ainda maior na renda nacional. Publicações recentes têm chamado a atenção para o fato de que esse efeito multiplicador tende a ser mais elevado em períodos de crise econômica, impactando positivamente também o emprego e o investimento privado.”
O governo brasileiro, contudo, alerta o documento, tem feito exatamente o contrário nos últimos anos. Embarcamos em um processo processo predador que intensifica, por um lado, a contração do nível de investimentos das empresas controladas pela União e, por outro, a venda de patrimônio, reforçando a tendência contracionista.
Confira a NT “Uma visão panorâmica das empresas estatais federais e possibilidades de atuação no pós-pandemia” :
https://www.dieese.org.br/