Por memória, verdade e justiça: Senge RJ relembra os horrores da ditadura nos corredores da UFRRJ

Testemunhas, vítimas e pesquisadores trazem à luz detalhes dos crimes cometidos pelo Estado durante o regime militar no campus da Universidade Federal Rural do Estado do Rio de Janeiro; Evento destaca a importância de lembrar para não repetir

Na véspera do golpe empresarial-militar de 1º de abril de 1964, a Universidade Rural do Brasil, atual Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), era um espaço de debates sobre grandes temas nacionais, resultado de anos de efervescência política e social. A reforma agrária, o método Paulo Freire de educação e outras pautas das esquerdas que compunham as bases do governo progressista de Jango estavam em debate na comunidade estudantil. Justamente por isso, a universidade de Seropédica entrou no radar do regime militar desde o seu início: a primeira inspeção aos alojamentos aconteceu três dias depois do golpe. Nos oito meses seguintes, a universidade seria palco de demissões, acusações, perseguições, torturas e sequestros.

Com o objetivo de trazer à luz as memórias daquele período a partir de documentos recém-descobertos, na última quinta-feira, 08 de agosto, o auditório do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), recebeu cerca de 40 pessoas para o evento “Uma história pouco conhecida: Os Horrores da Ditadura na UFRRJ”. 

Com o acompanhamento de 160 pessoas pela transmissão no canal do Senge RJ no YouTube, o evento marcou o encontro de colegas de longa data, “ruralinos” do ano de 1964 que viveram no campus de Seropédica no início da ditadura. Os amigos Delton Braga, Antônio Constantino de Campos e Dorremi Oliveira, testemunhas vivas da repressão direcionada à UFRRJ, compartilharam lembranças de uma universidade viva, pujante e, principalmente, resiliente.

“É preciso fugir da ideia de que do final de 1963 para 1964 uma tempestade caiu sobre a Rural e arrasou tudo sem motivo. Houve motivo. Aquela era a melhor universidade de agronomia do país. Ali tínhamos grandes mentes da agricultura nacional, autoridades em saúde pública, insetos, químicos, engenharia rural, irrigação e drenagem. E ao lado dessa produção técnica e científica, aconteciam grandes chamamentos sociais”, lembrou Constantino que, mais tarde, foi professor da UFRRJ.

Ele aponta que a universidade era sensível às grandes questões nacionais, como as reformas de base propostas por Celso Furtado. A comunidade docente e discente também estava atenta à pedagogia de Paulo Freire, sobre a formação do aluno como cidadão. “Havia o entendimento de que o objetivo da universidade era o ensino, pesquisa e extensão, mas que, em um país analfabeto, doente, arrasado pela fome, buscar a solução destas mazelas devia ser a prioridade que mobilizava toda a inteligência. Era uma universidade altiva, de muita expressão. Não é surpresa que um golpe de Estado para abafar tudo aquilo tivesse que atacar e castigar massivamente essa instituição”, destaca. 

Da esquerda para a direita, Antônio Constantino, Dorremi Oliveira, Jorge Antônio Silva, Ana Beatriz Oliveira e Igor Ferraz. Foto: Adriana Medeiros

Mediador da mesa, Jorge Antônio Silva, que viveu a relação da ditadura com a UFRRJ já em sua segunda década, na turma de 1977, lembrou emocionado a importância que Constantino teve para os alunos do movimento estudantil quando já era professor, um mestre da fisiologia vegetal. “Em algum momento, o movimento estudantil rompeu a barreira e começou a se reorganizar dentro da Rural, participando, inclusive, na formação da UNE.  A gente tentava identificar entre os professores aqueles que eram nossos parceiros e quais eram os infiltrados. O ambiente era de muita desconfiança. Mas nesse período todo, a gente sabia, só pelo olhar, que alguns professores tinham um carinho especial pelo nosso movimento, pela liderança do movimento estudantil da Rural. Um desses professores é o Constantino”, lembrou Jorge. 

Delton Braga, aluno da UFRRJ no início do regime militar. Foto: Adriana Medeiros

Mais uma das testemunhas do ano de 1964 na então Universidade Rural do Brasil, Delton Braga reforçou a conjuntura que colocou a UFRRJ na mira dos militares logo nos primeiros dias após o golpe. Ele lembra que, embora a repressão tenha recrudescido em todo o país após o Ato Institucional nº5 (AI5), já em 1964, os estudantes da universidade enfrentaram violência extrema. 

“A repressão era muito grande, principalmente em função das lutas estudantis pela mudança do Brasil. A escola de Veterinária da Rural tinha uma participação grande de cientistas da Fiocruz. Muitos deles foram caçados, exilados, tiveram que se refugiar em outros países. Além do Dorremi, aqui ao meu lado e Lorenzetti, mais três estudantes foram caçados para serem torturados. Felizmente não foram encontrados. E as prisões e violências não pararam aí. Muitos estudantes que conseguiram se formar, apesar de toda a violência, como eu, em 1965, tiveram que enfrentá-la nos anos posteriores, com impedimento de viajar, demissão de empregos públicos e perseguições”, conta.

Voz e luz à verdade

Dorremi e Lorenzetti, citados por Delton, foram responsáveis por outros dois depoimentos importantes para entender o horror vivido no de 1964 no quilômetro 47 da BR 465. Dorremi foi um dos estudantes presos e torturados pelo regime militar. Sobre o que passou nos porões do Quartel Depósito de Munições do município de Paracambi, preferiu não falar. 

Dorremi Oliveira, vítima da repressão que sufocou a UFRRJ em 1964. Foto: Adriana Medeiros

“Já fui convidado para prestar depoimento sobre o assunto e recusei, porque esse é um assunto que não me deixa confortável. Mas aqui, sabia que encontraria grandes amigos, que vejo na mesa e na plateia. Estou aqui pela importância da pesquisa histórica. Quando se promove esses eventos, é importante não só para ex-alunos, mas para todo o país, que precisa entender o que foi aquele período na Rural”, destacou. 

Dorremi, que hoje mora próximo a Fortaleza, conta que foi convencido pela esposa a comparecer ao evento e dizer algumas palavras. E assim foi. Mas ao invés de olhar para o passado que ainda incomoda reviver, preferiu fazer uma ponte com o Brasil hoje e alertar para o perigo fascista que saiu do armário após o golpe contra a presidenta Dilma, em 2016, e gerou Bolsonaro, um fenômeno intimamente ligado ao regime ditatorial derrubado em 1985. Destacou, também, a importância das novas gerações no resgate da história.

O depoimento de José Valentim Lorenzetti só se tornou público após seu falecimento. Gaúcho de Erechim, com 27 anos, filho de uma família camponesa, ele era, em 1964, o presidente do Diretório Acadêmico da Escola Nacional de Agronomia. Em seu primeiro contato com os militares que invadiram a universidade naquele ano, Lorenzetti escutou do Ten. Cel. Aquino o motivo de estarem ali: “Quero lavar o solo desta universidade com o sangue dos estudantes comunistas ou vê-los enforcados um em cada árvore destas”. Lorenzetti retrucou e teve como resposta “Você é um deles”.

A partir daquele momento, nos meses que se seguiram, Lorenzetti foi perseguido, sequestrado e brutalmente torturado. Sua história, um relato cru e em cores vivas do que viveu e como escapou da morte mais de uma vez, foi publicada em 1982, no Boletim Informativo no2 da Província Imaculada Conceição, em Passo Fundo, no Rio Grande do Sul. 

O jornalista Igor Ferraz. Foto: Adriana Medeiros

As memórias de Lorenzetti foram trazidas à luz graças ao trabalho de pesquisa e documentação realizado por Igor Ferraz, jornalista formado pela UFRRJ, junto ao Arquivo Nacional e, mais tarde – por força da Lei de Acesso à Informação – ao Supremo Tribunal Militar. A reportagem resultante da pesquisa encontra eco nas atividades do grupo de estudos sobre a ditadura na Rural, do departamento de História, sob a orientação do professor Pedro Campos, presente na plateia. 

“Isso que o sindicato está promovendo aqui, com a participação de jovens, é algo que não ocorreu esse tempo todo, mesmo com a Rural aqui, no nosso estado. Nunca houve essa discussão. Foi, até agora, um tempo de omissão total. Pedro Henrique, Igor e Beatriz são pessoas que, em período democrático, estão agora resgatando estas histórias em trabalhos que ficarão para as próximas gerações”, destacou Dorremi.

Necessário resgate da memória

Os representantes da nova geração apontada por Dorremi, que não viveu a ditadura, mas vêm se dedicando a descobrir e divulgar a verdade sobre aquele período, dividiram a mesa do evento com os ex-alunos de 1964 e com o organizador do evento, o diretor do Senge RJ, Jorge Antônio Silva. 

Além de Igor, que falou sobre a pesquisa que teve início em jornais da época e chegou ao Superior Tribunal Militar, através da Lei de Acesso à Informação, a historiadora Ana Beatriz de Oliveira apresentou sua pesquisa, que busca desvendar como funcionou a institucionalização dos aparatos repressivos durante o período militar no campus da Rural.

“Há trabalhos consolidados de documentação e coleta de depoimentos sobre tudo que foi vivido na universidade durante a ditadura, mas eles ainda não dão conta de expor tudo que aconteceu naquele período. Pensando nisso, começamos nossa pesquisa”, destaca Ana Beatriz. Ao longo da sua apresentação, ela trouxe informações sobre parte da história de uma universidade sufocada pelas forças militares golpistas. A exoneração do reitor Ydérzio Luiz Vianna, visto pelo regime como “simpatizante do comunismo”; a infiltração de militares no campus; o crivo da Secretaria de Informação, filiada ao Serviço Nacional de Inteligência, no controle dos acessos à universidade; a investigação do histórico dos professores, suas afiliações políticas e envolvimento partidário expuseram em detalhes a força da mão do Estado sobre a UFRRJ durante a ditadura.

Lembrar – e pesquisar – para não repetir

A historiadora e pesquisadora Ana Beatriz Oliveira. Foto: Adriana Medeiros.

Uma provocação de Ana Beatriz ao final de sua apresentação destacou a importância de jogar luz sobre este período da história brasileira. “Temos, na Universidade Federal Rural do Estado do Rio de Janeiro, um prédio principal tomado de placas, de fora a fora. Ali há placas das turmas de agronomia, medicina veterinária, todas as turmas que se formaram. Não há uma única placa que sinalize que houve tortura e perseguição dentro do núcleo universitário. Nada que faça essa sinalização. Essa história não está colocada. O caminho por justiça, verdade e memória é muito longo. Ainda não há uma produção temática grande sobre a educação na ditadura militar, principalmente sobre a Rural, um dos maiores campus da América Latina. Não temos essa memória colocada dentro da universidade”, finalizou Ana Beatriz.

Foi no mesmo sentido, de incentivar o aprofundamento das pesquisas sobre o período, que Igor lembrou que toda a massa documental encontrada por ele em sua pesquisa está depositada no Centro de Memória da Rural: “É uma mensagem dentro da garrafa para que futuros especialistas de história, direito ou comunicação possam trabalhar esse material, que passa pelo restante dos anos 1960, pelos anos 1970 e 1980. Aí sim, teremos uma ideia mais completa da história dos absurdos que aconteceram na Rural durante aqueles anos”.

Respondendo aos agradecimentos ao Senge RJ e ao Fórum dos Engenheiros Agrônomos e Agrônomas do Rio de Janeiro pela realização do evento, Jorge Antônio destacou que o Senge RJ, um sindicato com uma história de lutas pela democracia, que teve um papel ativo no período de redemocratização, não poderia deixar de divulgar a descoberta dos documentos. “É importante dar voz a todos e todas que viveram aquele período. Eles são muito importantes neste momento em que voltamos a sofrer impactos diretos daquele mesmo discurso extremista e excludente. Essas histórias não podem ser esquecidas. Precisam ecoar entre os jovens, porque precisamos de renovação, e aproximar as pessoas da política. Porque é quando elas se afastam que esse tipo de coisa acontece”, finalizou o diretor, que deverá levar o evento para a UFRRJ nos próximos meses.


Rodrigo Mariano/Senge RJ | Fotos: Adriana Medeiros

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