Muito se tem escrito e falado sobre o potencial estouro de uma bolha de inteligência artificial surgida nos Estados Unidos. Os números do mercado financeiro e das contas nacionais impressionam muito e evidenciam que sua ruptura pode causar danos consideráveis na economia do país. Não parece mais ser uma questão de se, mas de quando. O que pouco se tem explorado é a não formação de uma bolha semelhante no mercado da China. Como vamos ver ao longo do texto, parece que as diferenças são uma questão de timing e de filosofia: enquanto as big techs e o sistema financeiro norte-americano embarcou na decisão de fazer dinheiro com a tecnologia com a suposição de que no futuro ela trará os ganhos de eficiência prometidos, os chineses querem fazer negócios primeiro e ganhar dinheiro depois.
Mas o que causou a bolha atual? Nos EUA, a onda de IA impacta de imediato as contas nacionais porque o investimento em data centers, hardware e infraestrutura elétrica entra como formação de capital fixo mesmo que a produtividade demore a chegar. No primeiro semestre de 2025, por exemplo, diversos cálculos mostram que sem data centers o crescimento quase zera. Estimativas privadas com do JP Morgan[1] sugerem que o Capex de IA adicionará de 10 a 20 pontos percentuais ao PIB neste ano e no seguinte. Ou seja, a economia “cresce” pelo investimento antes de provar retorno, um clássico ingrediente de bolhas[2].
A alta está ultra-concentrada em poucas big techs (Nvidia à frente), elevando a precificação pela expectativa do por vir e deixando o S&P 500 dependente das “Magnificent Seven”. O FMI, o Banco Central Europeu e outras instituições têm alertado para esta concentração e valuations artificialmente expandidos, com chance de correção brusca se o lucro prometido pela IA atrasar, o que tem que ocorrer em 24 meses. Isso é típico de “bolhas de expectativa”: preço e Capex correm à frente dos fluxos de caixa[3].
A corrida por IA pressiona o fornecimento de energia elétrica e as redes, deslocando recursos para data centers e implantação de linhas elétricas dedicadas. Projeções falam em salto de 50% da demanda de energia de data centers até 2027 e cenários de 165% até 2030; o FMI já trata energia como restrição macro para a IA. Se a produtividade demorar, sobra Capex, energia cara e inflação setorial, esta última outro traço de bolha real-macroeconômica[4].
Realidade e narrativa
Três textos recentes descrevem com boas informações o que já está sendo percebido globalmente pelo mercado financeiro e o pode vir pela frente. O professor Scott Galloway descreve em um artigo[5] os riscos que os EUA correm no atual momento. A concentração do valor de mercado do grupo das 10 principais empresas no S&P 500 (as sete magníficas mais AMD, Broadcom e Palantir) e a ideia de que IA irá “salvar tudo” estão criando uma situação de difícil reversão. Como ele resume:
“As 10 principais ações do S&P 500 representam 40% da capitalização de mercado do índice. Desde o lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022, as ações relacionadas à IA registraram 75% dos retornos do S&P 500, 80% do crescimento dos lucros e 90% do crescimento dos gastos de capital. Entretanto, os investimentos em IA representaram quase 92% do crescimento do PIB dos EUA este ano. (…)
As avaliações do Mag 10 são elevadas, mas ainda não atingiram picos históricos. O rate P/E futuro de 24 meses do Mag 10 é de 35 vezes. Em 2000, no auge da bolha das pontocom, as 10 principais ações eram negociadas a 52 vezes os lucros futuros. No entanto, implícito nessas avaliações está o pressuposto de que a IA ajudará essas empresas a reduzir custos ou a aumentar as receitas em US$ 1 trilhão nos próximos dois anos para justificar preços atuais.”
Galloway resume o descompasso mostrando que US$ 100 bilhões ao ano em investimento em IA justificaria US$ 1,8 trilhão em acréscimo de valor de mercado, algo que só se sustentaria com difusão rápida de produtividade, coisa que está longe de aparecer[6]. Neste caso, a concentração de mercado vira um risco sistêmico. As MAG 10 explicam parcela desproporcional dos ganhos e da capitalização fazendo com que qualquer atraso em monetização leve a uma reprecificação em cascata[7].
O autor cita também um estudo de 2018 que analisou 51 inovações entre 1825 e 2000 revelando que 37 foram acompanhadas por bolhas. A destruição que se seguiu ao fim de cada bolha, no entanto, variou muito, dependendo de vários fatores. As bolhas inflacionadas por políticas governamentais são mais destrutivas do que aquelas inflacionadas por novas tecnologias, de acordo com os historiadores econômicos William Quinn e John Turner. Galloway compara o entusiasmo atual com Nvidia ao caso Cisco na bolha dot-com: líder de infraestrutura, margens elevadas, narrativa irresistível — até que a demanda “prometida” demorou levando à lição de que hardware como núcleo central da capitalização pode sofrer compressão de precificação de ações antes de a produtividade agregada surgir.
Dois mundos
Natasha Sarin[8], no The New York Times[9], enxerga claramente os EUA divididos em “duas economias”: IA versus o resto. Um núcleo IA-intensivo (big techs, fornecedores de chips, energia e construção de data centers) que puxa PIB e mercados para cima; e um outro cenário que anda de lado. Para ela, a implicação macroeconômica é parecida com a constatação de Galloway, mas ela também analisa os empregos que não acompanham o crescimento uma vez que os ganhos são concentrados e efeitos limitados fora do cluster de IA[10].
A professora de Yale também enquadra tarifas generalizadas como as do presidente Donald Trump como um choque adverso que encarece insumos, embaralha cadeias e compensa parte do impulso da IA — especialmente nos setores “não-IA”. Sem a entrega de ganho real e um freio comercial torna mais difícil entregar a produtividade prometida no horizonte de curto prazo. Evidências paralelas sugerem que tarifas podem acelerar automação (substituindo trabalho onde os custos sobem), acentuando a bifurcação entre o núcleo de IA e o restante da economia.[11]

Resíduos pós-bolha
O autor de Enshittification, Cory Doctorow, resolveu fazer previsões sobre o futuro após o estouro[12]. Para ele, quando a bolha murchar, o que fica pode vir a ser um resíduo positivo. Uma oferta de GPUs baratas vendidas a preço de liquidação, mão-de-obra qualificada buscando realocação (engenheiros e cientistas de dados) e um ecossistema open-source já funcional que tende a melhorar muito quando otimizado e combinado com esse hardware mais acessível. A oportunidade está em recolocar esse excedente para usos realmente úteis: universidades e sistemas públicos (saúde, educação, justiça), pequenas e médias empresas e cooperativas digitais, que podem montar clusters modestos. Além disso, estes bons recursos ajudarão a treinar ou afinar modelos abertos e resolver problemas locais — com custos que, pela primeira vez, cabem no orçamento.
Para capturar esse ganho, Doctorow sugere que o resíduo seja absorvido em vez de deixar que ele se reconcentre em incumbentes. Isso implica políticas e arranjos práticos: compras públicas de oportunidade (hardware de data centers em liquidação), “compute commons” regionais para pesquisa e serviços públicos, programas de requalificação que reorientem talentos para missões de impacto, e “stack” aberto (modelos, dados e ferramentas) para reduzir dependências e acelerar a difusão. O articulista traz um paralelo histórico para defender seu cenário. Após outras bolhas, a infraestrutura ociosa virou bem público (como fibras “apagadas” iluminadas anos depois). No caso atual, a combinação GPU barata + talento disponível + modelos abertos pode inaugurar uma fase **pós-bolha** mais utilitária, distribuída e acessível — menos financeira, mais produtiva.
Lições chinesas
O quadro pintado por Galloway e Sarin trazem a China para o debate. Porque o país fez exatamente o contrário dos EUA em relação a vários domínios das tecnologias digitais. É claro que o estouro da bolha no mercado norte-americano terá impacto em quase todo o globo. Mas o que interessa analisar aqui é porque algo semelhante não se formou por lá. Única postulante a assumir a liderança em IA, e se aproximando do estado da arte do concorrente, a política chinesa teve, a meu ver, quatro componentes que impediram o crescimento de uma bolha como a estadunidense. Basicamente, eles desacoplaram o preço dos ativos da narrativa que alimenta o hype. O que gera um retorno mais lento, mas mais sustentável e com menos riscos sistêmicos.
Em primeiro lugar, do ano passado para cá houve um aperto em venture capital e foram colocadas âncoras para evitar sobrevalorização das ações de suas startups e big techs nas bolsas. Com menos oferta de “dinheiro fácil” evitou-se a espuma financeira típicas de bolhas[13]. No front regulatório, passaram a ser exigidas licenças, adequação a padrões e conformidade de conteúdo, o que tende a desacelerar a escalada especulativa em modelos genéricos e reorientar capital para aplicações “úteis” e conformidade[14]. Em terceiro, foi criada uma política industrial direcionada – provocada pelos limites em importação de GPUs de alta performance dos EUA.
Isso levou a uma iniciativa de “compute-first” chamada de “Leste-Dados e Oeste-Computação” por meio da qual reposicionou-se o investimento para construção de infraestrutura de longo prazo (centros de computação “inteligentes”, energia, localização de data centers em regiões desabitadas do Oeste), causando menos efeito-manada em ações e mais Capex público-orientado[15]. Por fim, foi estabelecida uma política de inovação controlada pelo Estado, o que vem criando regularmente casos como o do DeepSeek, com clusters menores fazendo avanços “software-first” no desenvolvimento de aplicações. Esta escolha moderou o frenesi por GPUs, reduzindo a euforia financeira mesmo com progresso técnico[16].
Mesmo as restrições de acesso à hardware como as barreiras colocadas por Trump estão sendo superadas pela China, que vem alocando recursos vultosos para desenvolver o mercado de semicondutores e placas de ponta a fim de encarar o quase monopólio global da NVidia. Isso obrigou a empresa de maior valor dos EUA a fazer uma adequação de sua geopolítica nos últimos meses a fim de convencer a Casa Branca a permitir mais exportações[17]. Outra escolha acertada da política industrial de Pequim foi investir em soluções de código aberto e mais aplicações dirigidas aos segmentos de não-IA, baseadas em modelos menores, que exigem menos capacidade de processamento. Isso abriu mercados e vetou investimentos estratosféricos em capital.
Adiando a bolha
Se as fotografias de Sarin e Galloway estiverem corretas, a bolha de IA ainda pode ser contida nos EUA. Mas isso exigirá recursos de grande monta. Uma agenda de mitigação antes do estouro passaria por três vias a serem monitoradas e implementadas. Primeiro, difundir IA para setores “não-IA” (adoção em pequenas e médias empresas, serviços públicos, saúde, educação) para reduzir a bifurcação das duas economias apontada pela professora. Em paralelo, aliviar gargalos de energia e conectividade para que o Capex gere ganhos de eficiência sistêmica e não inflação setorial. Por fim, o governo precisa calibrar tarifas para não neutralizar os ganhos de produtividade incipientes.
Mesmo que venha o estouro, Doctorow vê condições para obter sucesso. É preciso criar governança para evitar reconcentração do excedente; interoperabilidade para que laboratórios, governos e cooperativas compartilhem recursos, e métricas de impacto (serviços mais rápidos e baratos, filas menores, eficiência energética). O “fim” da bolha, portanto, não precisa ser um deserto. Pode ser o começo de uma economia de IA de baixo custo, aberta e orientada a problemas reais, se houver estratégia para socializar o que a especulação deixou para trás.
Para observar estes impactos e retardar ou minorar os danos com a explosão da bolha será necessário investimento para reduzir os gastos com estruturas de data centers, consumo elétrico do setor, participação do cluster IA no crescimento do PIB, evolução de margens fora do mercado tech e abertura de vagas por setor[18]. Uma lição de casa difícil de implementar no momento em que o hype ainda nos impede de ver além da espuma.
* – Sobre o Autor: James Görgen é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. As opiniões expressas nesse artigo não necessariamente refletem o ponto de vista de TELETIME.
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Referências
[1] https://www.reuters.com/markets/us/jpmorgan-forecasts-spending-data-centers-could-boost-us-gdp-by-20-basis-points-2025-01-16/
[2] https://fortune.com/2025/10/07/data-centers-gdp-growth-zero-first-half-2025-jason-furman-harvard-economist/
[3] https://www.theguardian.com/business/2025/oct/14/us-shares-correction-markets-imf-bonds
[4] https://www.goldmansachs.com/insights/articles/how-ai-is-transforming-data-centers-and-ramping-up-power-demand
[5] https://medium.com/@profgalloway/how-does-the-end-begin-2a578f72a902
[6] https://www.mediaite.com/media/podcasts/scott-galloway-warns-stock-market-is-a-late-stage-bubble-america-right-now-is-a-giant-bet-on-ai/
[7] Outros analistas têm feito alertas semelhantes, reforçando a tese de Galloway. https://www.businessinsider.com/stock-market-crash-bubble-rob-arnott-tech-ai-magnificent-seven-2025-3
[8] [1]: https://law.yale.edu/natasha-sarin
[9] https://www.nytimes.com/2025/10/06/opinion/ai-growth-economy-jobs-tariffs.html?nl=Opinion+Today
[10] Relatórios recentes falam em crescimento sem emprego nos EUA à medida que a IA avança; e o FMI vincula a resiliência do PIB de 2025 ao boom de investimento em IA, com risco de correção se a produtividade não aparecer logo.
[11] https://time.com/7276087/trump-tariffs-ai-automation-robots/
[12] https://doctorow.medium.com/https-pluralistic-net-2025-10-16-post-ai-ai-productive-residue-5cc95ad345f9
[13] https://news.crunchbase.com/venture/china-leads-asia-downturn-ai-ev-data-centers/
[14] https://www.nbr.org/publication/chinas-generative-ai-ecosystem-in-2024-rising-investment-and-expectations/
[15] https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S2095809924005058
[16] https://www.csis.org/analysis/deepseek-huawei-export-controls-and-future-us-china-ai-race
[17] https://www.techpolicy.press/the-rise-and-fall-of-nvidias-geopolitical-strategy/
[18] https://www.ft.com/content/74224d84-8a7a-4d0d-a30d-1716e2d43b7a