Porque é preciso cobrar do governo o impossível e parar de fugir da polarização para escapar do sequestro da direita que domina o Congresso

“Por medo, vivemos um ‘pragmatismo do possível’, que nos coloca cada vez mais na defensiva. É preciso cobrar do governo o impossível, independente de se saber ou não que há pessoas muito boas, dedicadas cotidianamente a fazê-lo avançar. Só exigindo o impossível daremos uma sustentação concreta para que os governantes possam olhar para trás, identificar uma retaguarda e avançar sinalizando que tem povo organizado exigindo avanço. Precisamos, algumas vezes, de uma defesa ferrenha e, em outras, de uma crítica coerente para que seja cumprido o que foi selado nas urnas”.

A análise é da economista e professora Juliane Furno, em debate realizado pelo programa GGN Nova Economia, do jornalista Luis Nassif. Assessora especial da presidência do BNDES, Furno fala, em tom de autocrítica, sobre o espaço cada vez maior cedido pelo governo à direita, enquanto apresenta pautas rebaixadas, buscando evitar o enfrentamento político e enfraquecer a polarização na qual o Brasil segue mergulhado.

A pauta que norteou a entrevista de Juliane e Pedro Rossi, também economista e professor – ambos autores do livro “Economia para transformação social: pequeno manual para mudar o mundo, ” -, foi a virada de chave na política fiscal do governo. O primeiro ano da gestão Lula 3 foi de recuperação de políticas públicas e forte investimento em desenvolvimento. Graças à PÈC da Transição, havia a folga orçamentária necessária para a destinação de mais recursos para os ministérios e para tornar possível o aumento do salário mínimo, o reajuste para os servidores, a retomada das bolsas para pesquisas, a ampliação e criação de políticas sociais, entre outros avanços significativos que colocaram o Brasil de volta ao caminho do crescimento.

Mas, a partir de 2024, a PEC da Transição deu lugar ao Arcabouço Fiscal, ferramenta de estrangulamento de gastos públicos que, embora represente um avanço comparado ao Teto de Gastos em vigor até o final de 2022, aponta para a direção inversa à visão de desenvolvimento que o próprio presidente Lula defende.

Juliane avalia que o ministro Fernando Haddad fortalece o discurso de perseguição da meta de déficit zero em resposta à pressão do mercado e de forças conservadoras. “A gente precisa lembrar que Lula foi eleito por uma frente ampla que encontrava a unidade em pautas antibolsonaristas em seu caráter mais golpista, antidemocrático, nas pautas individuais, Essa mesma frente tinha muito mais fissuras e contradições na pauta econômica”, destaca. A economista aponta, porém, que o diagnóstico não dá salvo-conduto para a letargia.

“O problema, na minha avaliação pessoal, é a insistência do governo. Nós deveríamos ser aqueles que esticam a corda. Do outro lado, o mercado faria pressão e, desse processo, se chegaria a uma mediação com um caráter menos neoliberal. Assim seria possível alcançar algo que ainda não é o ideal, mas que, ao mesmo tempo, não se ajoelha tão precocemente e defende como se fosse sua a pauta de que o orçamento precisa, necessariamente, ser equilibrado às custas de uma economia que ainda sobrevive com uma herança maldita da pandemia ou da recessão de 2015”, destaca Furno.

Disputa em aberto

Embora o Arcabouço Fiscal esteja em vigor, a disputa ainda está colocada e precisa de organização: no primeiro ano do governo, o debate sobre o desenvolvimento do país permeou as ações de diferentes ministérios, mas o executivo ainda não tem uma identidade no que diz respeito à política econômica, alimentando contradições. 

“A gente tem que mudar isso. E é possível mudar. Não precisamos nos apegar ao Arcabouço Fiscal da forma com que ele foi construído e modificado no Congresso Nacional. Se a gente inverter a ordem das discussões, colocando o desenvolvimento em primeiro plano, ele vai esbarrar na limitação orçamentária e uma decisão terá que ser tomada: qual vai ser a identidade do governo Lula? Será relacionada à austeridade fiscal com componentes desenvolvimentistas ou será aquela que vai ter de fato  tocar uma agenda identificada com o crescimento econômico, do emprego e com a redução das desigualdades? Isso ainda não está definido, está em disputa”, aponta Rossi.

“Nós administramos o capitalismo e a máquina pública. É a função do governo. Mas ele também precisa ser aquele que cava e fortalece espaços para, junto das organizações sociais, colocar cunhas nesses debates, sob o risco de sermos os próprios portadores do discurso que nos cerceia e que aprisiona a capacidade do governo de fazer política fiscal”, completa Juliane.

Quem não polariza, desaparece

Com propostas rebaixadas e avanços extremamente cautelosos, o governo Lula vem desenhando, no Brasil, um cenário diferente daquele vivido por outros países latinoamericanos que enfrentaram com organização e reação robusta as pressões do neoliberalismo. Segundo Juliane, a causa pode ser o medo. 

“Em outros países latinoamericanos onde a esquerda sofreu tentativas de golpe ou que enfrentaram o cerceamento de grupos internos muito organizados, se consolidou uma base social muito resistente, que passava a esticar mais a corda. No caso do Brasil, a moderação exacerbada, ao contrário de amansar nossos inimigos, demonstrou as nossas fraquezas. Passado o golpe, ao contrário de termos aprendido que nossa fragilidade fortalece o outro lado, parece que estamos mais pragmáticos, mais moderados, concedendo ainda mais do que antes. Parece que não aprendemos essa lição. Talvez estejamos constantemente submetidos ao medo de um novo golpe, de não conseguirmos identificar até onde podemos ir, até onde a corda da negociação é possível”, avalia.  

Para ela, no cenário polarizado que ainda domina o país institucionalmente, o pragmatismo alimenta o inimigo e mostra que a esquerda segue passível de ataques. “Quem não polariza, desaparece. Alguém precisa exigir o impossível”, destaca. 

Na entrevista, que contou com os economistas e professores Leda Paulani e João Furtado como entrevistadores convidados, uma pergunta ficou sem resposta: o governo não age porque a esquerda perdeu a capacidade de mobilizar ou a esquerda perdeu a capacidade de mobilizar porque o governo não age? Juliane, naquele momento sem a palavra, sorri e balança a cabeça, sem resposta. Pedro, a quem Nassif endereçou a pergunta, elogia o questionamento, mas não responde diretamente. Este paradoxo, talvez nem os especialistas saibam responder. Evitando o debate para não desgastar o governo, é possível que ninguém consiga em tempo algum. É preciso coragem.

 

Redação: Rodrigo Mariano
Fotos: Joédson Alves/Agência Brasil; Le Monde Diplomatique/Reprodução

 

Pular para o conteúdo