As mulheres, o acesso à água, saneamento e higiene e a busca por justiça climática

Artigo de Priscila Neves Silva, doutora em Saúde Coletiva, do Instituto René Rachou/Fiocruz-MG, aponta as diferenças de impacto relacionadas a gênero e defende maior participação das mulheres na tomada de decisão no setor.

Fonte: ONDAS-Privaqua*
____________________________

Priscila Neves Silva – Doutora em Saúde Coletiva, do Grupo de Pesquisa em Políticas Públicas e Direitos Humanos em Saúde e Saneamento – Instituto René Rachou/Fiocruz-MG

As mudanças climáticas têm impacto direto no acesso aos serviços de água, saneamento e higiene das diversas populações, uma vez que ela muda o ciclo da água tendo como consequência as inundações e as secas. O aumento no número de casos de seca ou de inundações vai interferir na qualidade, quantidade, disponibilidade, acessibilidade física, econômica e aceitabilidade relacionados ao acesso. Dessa forma, políticas que melhorem os serviços de água, saneamento e higiene, incluindo o planejamento e a alocação de recursos financeiros, devem ser reconhecidas como uma parte crítica e essencial na construção da resiliência das comunidades e na busca por justiça climática.

No entanto, cabe ressaltar que a carga dos efeitos da mudança climática no acesso aos serviços não é a mesma para todos os grupos populacionais. Ela se relaciona com o papel assumido por cada grupo para garantir o acesso. Nesse caso, as mulheres e meninas são afetadas de forma desproporcional e sentem mais os impactos negativos devido às questões intrínsecas da sociedade que as colocam como responsáveis pelo cuidado da casa, das pessoas doentes, das crianças e, com isso, responsáveis também pela coleta de água e limpeza dos banheiros e das latrinas. Para além disso, as mulheres necessitam acesso adequado a serviços de água, saneamento e higiene para que possam fazer a gestão da menstruação. A falta de acesso, dentre outras coisas, impacta a saúde, a participação em atividades produtivas e impede que meninas frequentem a escola, o que gera perda de autonomia e de independência e as torna menos resilientes e saudáveis.

No contexto de mudanças climáticas, os episódios de secas fazem com que as mulheres tenham que se deslocar por distâncias mais longas, e enfrentar filas maiores, para conseguirem coletar água, o que resulta em maior tempo gasto nessa tarefa. Por sua vez, as inundações, ao danificarem banheiros e latrinas, colocam mulheres e meninas em contato com água contaminada uma vez que, em muitos casos, são elas as responsáveis pela limpeza. Além disso, a queda na quantidade de água disponível prejudica a higiene pessoal e gestão da menstruação.

Dito isso, ressalta-se a importância da inclusão das mulheres nos processos de tomada de decisão, no que se refere não apenas à elaboração de políticas de acesso à água, saneamento e higiene de forma geral, como também, nas definições de políticas e ações de mitigação e adaptação relacionadas às mudanças climáticas. Quando as mulheres participam ativamente dos processos de tomada de decisão, os serviços de água, saneamento e higiene são mais acessíveis, seguros, sustentáveis e eficientes. Dessa forma, a participação social de mulheres e meninas deve ser garantida para que as necessidades específicas possam ser identificadas corretamente por meio do compartilhamento de experiências e conhecimentos.

É necessário lembrar, contudo, que as mulheres não fazem parte de um grupo homogêneo. Elas são diferentes e, como tal, têm necessidades e demandas diferentes. Portanto, é necessário considerar a participação de representantes dos diferentes grupos de mulheres. Para isso, cabe usar como referência a interseccionalidade, conceito que ganhou força com o movimento feminista negro nos Estado Unidos do século XX, e que visa compreender como as diversas categorias que determinam a diversidade social, como sexo, classe, raça, deficiência, idade, entre outras, interagem e se sobrepõem nas situações de discriminação. Nesse sentido, ser mulher negra e deficiente é uma situação que gera mais discriminação que ser mulher branca e sem deficiência. Dito isso, levar em consideração as diferentes dimensões relacionadas à interseccionalidade, nos processos participativos e de tomada de decisão, é essencial para assegurar ações resilientes e sustentáveis e que possam responder às diversas demandas.

Mas não basta inseri esses grupos nos espaços de tomada de decisão se não conseguem ter participação ativa, se não conseguem ser ouvidos e terem suas demandas valorizadas, influenciando a tomada de decisões. As mulheres podem ser parte da solução e isso deve ser ampliado e fortalecido. Elas devem ser capazes de influenciar os governos para que possam implementar, de forma prioritária, políticas e ações que reconheçam, e sejam sensíveis aos impactos das mudanças climáticas, levando em consideração as especificidades de gênero. Deve ser permitindo a elas acesso a recursos que possam auxiliar na implementação de soluções e na busca por justiça climática.

Dessa forma, tornar os serviços de água, saneamento e higiene adequados às diferentes necessidades, e resilientes à mudança climática, requer novas formas de participação social durante os processos de tomada de decisão, planejamento e gestão, que devem ser, sempre, orientadas pela questão de gênero. É importante priorizar políticas, programas e ações de enfrentamento à mudança climática que visem responder às questões de gênero, contribuindo para a equidade. Equidade e não discriminação, participação social, acesso à informação, transparência, sustentabilidade e prestação de contas, princípios basilares dos direitos humanos, devem ser a base de toda construção política que envolve o acesso à água, ao saneamento e higiene.

Diante disso, devemos questionar de que forma a prestação privada que vem se instaurando no Brasil visa construir ações de mitigação e adaptação à mudança climática e se/como pretende assegurar a participação dos diferentes grupos de mulheres nos processos de tomada de decisão.

* Observatório Nacional do Direito à Ágaua e ao Saneamento (ONDAS).

Texto da ** INTERAÇÃO ONDAS-PRIVAQUA: DE OLHO NA PRIVATIZAÇÃO DO SANEAMENTO, publicado em 14 de dezembro de 2022.
** Privaqua é um projeto de pesquisa que obejtiva entender processos de privatização dos serviços de água e esgotos, tendo por orientação teórico-analítica o marco dos direitos humanos. Neste espaço do site do ONDAS, o Privaqua publica periodicamente textos curtos sobre a temática do projeto, visando divulgar achados parciais, compartilhar reflexões e disseminar elementos da literatura científica sobre o tema. A intenção é a de dialogar com um público não necessariamente familiarizado com a linguagem acadêmica e com os veículos tradicionais de comunicação científica. Trata-se de uma tentativa de exercitar o que se denomina de divulgação científica, para público não-especializado, transpondo os chamados “muros acadêmicos”. O desafio é de, sem perder o rigor, disseminar aspectos do tema da privatização dos serviços de saneamento, visando sobretudo qualificar as atividades da militância do setor.

 

Imagem de Tobamedia por Pixabay 

Pular para o conteúdo