Por Jorge Folena*
Estudiosos da temática da justiça de transição apontam que um dos erros cometidos pela Nova República, ao final da ditadura de 1964-1985, foi não ter promovido uma imediata depuração nas instituições do Estado brasileiro, que estavam infestadas de agentes que cooperaram com o regime. Vale destacar que não apenas os militares serviram ao governo de exceção: um grande número de civis também colaboraram de diversas formas para a sua manutenção.
Com efeito, a Constituição de 1988 concedeu o prêmio da estabilidade no cargo a diversas pessoas que ingressaram no serviço público sem concurso, com a única exigência de que tivessem sido contratadas até 5 de outubro de 1983 pela União, Estados e Municípios, conforme previsto no artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.
Pode-se afirmar que, após o período inicial da Nova República (1985 a 1989), o Brasil passou da ditadura para a democracia sem romper formalmente com o regime antecessor, permitindo que indivíduos que defenderam o regime autoritário permanecessem nas instituições públicas civis, nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, no Ministério Público e demais cargos da burocracia estatal, com muitos deles atuando como condutores da nova ordem, partir da Constituição de 1988.
Os verdugos da ditatura não foram responsabilizados até hoje, conforme assegurado pelo STF, no julgamento da ADPF 153, que recepcionou a lei de anistia de 1979. Em decorrência, na ordem constitucional atual, o mesmo perdão tácito foi concedido aos integrantes da operação lava jato (juízes, procuradores e policiais), que atuaram em total desrespeito à Constituição e contra a soberania nacional, com típico comportamento fascista e entreguista das riquezas do país aos interesses internacionais.
A verdade é que saímos apenas formalmente da ditadura de 1964-1985, pois preservou-se a influência da mesma classe dominante, representante dos interesses do imperialismo, do latifúndio e do fascismo, que, há mais de um século, se organizam num consórcio do atraso contra os interesses do país e da maioria do povo brasileiro.
Talvez tenha se acendido uma luz no fim desse túnel escuro no dia 20 de maio de 2025, quando a Primeira Turma do STF aceitou a denúncia apresentada pelo Procurador Geral da República contra o denominado “núcleo 3” das ações golpistas que culminaram na tentativa de golpe de estado do 8 de janeiro de 2023; em decorrência, nove militares (um general e oito coronéis) e um policial federal tornaram-se réus.
Conforme a denúncia do PGR, este grupo de servidores públicos recebeu a tarefa de fomentar a mobilização de militares de alta patente contra o sistema eleitoral, para criar um ambiente propício ao golpe de estado; foram incumbidos ainda de executar (matar) os vencedores na eleição presidencial de 30 de outubro de 2022; no caso, o Presidente Lula e seu vice Geraldo Alkmim, e também o ministro Alexandre de Moraes do STF, presidente do Tribunal Superior Eleitoral à época dos fatos.
É oportuno ressaltar que são todos servidores públicos, que utilizaram as estruturas do Estado brasileiro para uma tentativa de golpe de estado, que, se tivesse logrado êxito, poderia ter levado à morte de autoridades e de quem quer que se colocasse contra seus objetivos.
Poucos dias antes desse 20 de maio veio a público um áudio com a manifestação do policial federal, ora denunciado, Wladimir Soares, que estava infiltrado na equipe de segurança do presidente Lula. O áudio deixa claro que o grupo estava disposto a executar friamente quantos fossem necessários para implantar um regime autoritário no país, talvez mais sanguinário que o de 1964-1985.
Não podemos esquecer que o golpe foi planejado e tentado a serviço dos interesses do ex-presidente inelegível, que manifestou algumas vezes seu desejo de derramamento de sangue, ao afirmar que sua especialidade era matar e que “o erro da ditadura foi não ter matado pelo menos uns trinta mil”.
Pelo visto e ouvido, havia forte movimentação nos bastidores do golpe, estando a postos a raia miúda das forças militares e de segurança pública, que seriam empregadas pra fazer o trabalho de limpeza, retirando a vida dos que fossem defender a democracia. Por isso fica cada dia mais nítido porque muitos policiais militares do Distrito Federal, na Praça dos Três Poderes, não reagiram às ações golpistas no 8 de janeiro de 2023.
Muito provavelmente, as diversas forças de segurança pública (polícias militares e civis e guardas municipais) dariam a retaguarda aos golpistas por todo o país, se a ação não fosse debelada rapidamente, como de fato aconteceu.
E poderia ter acontecido no Brasil naquele dia o mesmo que ocorreu na Bolívia no golpe de 2019, quando as forças policiais locais fizeram o trabalho sujo, enquanto os militares cruzavam os braços e deixavam os golpistas livres para agirem na tomada de poder.
No Brasil, tanto as forças de segurança quanto as forças militares e quadros da burocracia estatal, inclusive do Poder Judiciário, do Ministério Público e do legislativo, estão impregnadas pelo espírito fascista.
Temos vários exemplos dessa influência, que vai de policiais que não garantem a cidadania até militares que veem os nacionais como inimigos; e passa por juízes e promotores, como os que atuaram na lava jato, que não respeitam minimamente o estado democrático de direito; além dos burocratas, que, muitas vezes com deboche e perversidade, impedem ou dificultam aos cidadãos o acesso a direitos fundamentais.
Por tudo isso, considerei muito significativa a presença do presidente Lula nas celebrações pelos oitenta anos da derrota militar do nazifascismo (ao final da Segunda Guerra Mundial), realizadas na Rússia em 9 de maio de 2025. Acredito que, assim, o presidente pôde perceber que a luta que travamos no país não é apenas pela superação da pobreza extrema e a necessidade de formação de um estado efetivamente soberano e desenvolvido; acima de tudo, é preciso esclarecer a sociedade sobre a ameaça que o fascismo representa e os males que tem causado ao país.
O fascismo é produto do liberalismo e do capitalismo, destituídos de qualquer interesse em atender as necessidades humanas ou de garantir a paz; seu único objetivo é manter o processo exploratório e garantir que a concentração de capital permaneça nas mãos de poucos; ocorre que, para manterem sua espiral incessante de acumulação, necessitam promover um estado quase permanente de exceção, fomentando guerras, destruição e mortes.
Diante das circunstâncias, creio que os julgamentos em curso no STF são importantes para o estabelecimento no Brasil de uma nova cultura, contrária a ações golpistas e antifascista.
Assim, a conclusão é que necessitamos implementar com urgência uma política nacional de desnazificação das instituições do estado brasileiro, para que possamos, enfim, corrigir o grande erro da Nova República, que, ao não enfrentar o problema do fascismo, possibilitou que o pensamento fascista se refugiasse nas sombras, se fortalecendo e se multiplicando, com sua ameaça permanente de atacar nos momentos de vulnerabilidade institucional com seu discurso de ódio e destruição.
* Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ, Jorge também coordena e apresenta o programa Soberania em Debate, do movimento SOS Brasil Soberano, do Senge RJ.
Foto: Marcelo Casal Jr/Agência Brasil