A terceirização de projetos e os cortes orçamentários estão corroendo décadas de excelência nos principais centros de pesquisa e desenvolvimento do país e colocando em risco a soberania tecnológica nacional, ameaçada também pela diretriz privatista do governo federal. O alerta foi feito em debate realizado pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), que contou com a participação de especialistas de áreas estratégicas – petróleo, telecomunicações, energia: o engenheiro mecânico Ney Robinson, do Cenpes, da Petrobras; o engenheiro de telecomunicações Marcio Patusco, conselheiro do Clube de Engenharia e do Crea-RJ, além de integrante do Comitê Gestor da Internet (CGI.br); Célio Bermann, professor associado do Instituto de Energia e Ambiente da USP; e o diretor do Senge RJ Agamenon Oliveira, pesquisador do Cepel (da Eletrobras) e professor da Escola Politécnica da UFRJ.
Nas áreas de energia e de petróleo, gás e biocombustível, Bermann, da USP, adverte que estão sendo revisados – para baixo – os percentuais historicamente definidos para aplicação em pesquisa e desenvolvimento. Segundo ele, por padrão, 0,75% da receita líquida anual das empresas desses segmentos deve ir para P&D, e 0,25%, para eficiência energética. “Isso está em risco agora. Essa fórmula de amparo à pesquisa está sendo revista, sem que a sociedade tenha conhecimento. Alerto também para a forma como as instituições de apoio à pesquisa e desenvolvimento, como a Finep, estão tendo seus recursos reduzidos de forma significativa. Não é por acaso.”
Terceirização do conhecimento
“É um momento de muita perplexidade e tristeza, com o desmonte enorme das coisas do povo brasileiro”, afirma Ney Robinson, do Cenpes, que desenvolveu o “robô ambiental híbrido Chico Mendes”, capaz de operar em terrenos alagados da Amazônia, aplicando sua experiência em tecnologias em águas profundas, criadas para apoiar a exploração do pré-sal. Segundo ele, outra via de ataque à capacidade nacional de inovação é a terceirização dos projetos, que fragmenta o ciclo de desenvolvimento. “A pesquisa está muito na mão de empresas terceirizadas, que trabalham atendendo a um nicho de mercado, e depois saem levando o conhecimento”, critica. “Com isso, fica difícil criar uma rastreabilidade das coisas que estamos desenvolvendo.”
Para o pesquisador, empresas como Vale do Rio Doce (antes da privatização), Embraer, Petrobras e Eletrobras, tiveram sucesso porque garantiram, sob sua administração, os itens estratégicos e todo o ciclo de de produção deles. “O negócio como um todo era azeitado, porque o fluxo de informação rodava nos centros de pesquisa, na produção, na parte administrativa. Tenho muita preocupação com a terceirização dos trabalhos – entre aspas – que não são considerados atividades fins. A empresa perde a sinergia, o calor de estar discutindo um problema com quem vai resolvê-lo e fixar internamente esse conhecimento.”
A terceirização também leva à “desresponsabilização”, diz Célio Bermann, da USP. Ele cita os erros de projeto na usina de Belo Monte e a retirada do Cepel da possibilidade de atuar no monitoramento. “Queria fazer referência a algo que a engenharia está tendo grande dificuldade em absorver: toda as bacias e o regime hidrológico do Brasil estão sendo alterados de forma significativa pelas mudanças climáticas. Onde chovia, não chove tanto; onde chove em determinada frequência, está chovendo muito. E isso altera o que a engenharia tinha como princípio. O regime hidrológico não é mais o mesmo, o que faz com que a concepção do projeto não possa levar em consideração as vazões mínimas registradas nos últimos 60 anos. Belo Monte é exemplo dessa dificuldade, que a engenharia vai precisar considerar. Mas de que forma, se a capacidade dos centros de pesquisas para resolver e buscar soluções, de antecipar e antever as situações, está sendo dinamitada?”
Mudanças climáticas
Nessa questão, o diretor do Senge RJ e pesquisador do Cepel, Agamenon Oliveira, destaca que a proposta de privatização do setor elétrico vai tornar ainda mais complexos os problemas derivados das mudanças climáticas, devido à fragmentação da sua estrutura operacional. O fato de ser um sistema interligado assegura, atualmente, um ganho de eficiência da ordem de 25%, diz.
“O sistema elétrico funciona como um conjunto de caixas d’água espalhadas pelo Brasil inteiro. Quando se quebra o sistema, e ele fica mais pulverizado, fragmentado, torna-se mais difícil enfrentar a mudança climática”, explica o engenheiro, professor da Escola Politécnica da UFRJ. “Se está chovendo em uma região mais do que deveria, seria possível usar a capacidade de acumulação para transferir o excedente para outra região com regime hidrológico menos favorável. Se o sistema for privatizado e as usinas, vendidas, essa dificuldade é elevada a um fator infinitamente maior.”
As metas e objetivos estabelecidos pela própria Eletrobras em seu planejamento estratégico (confira aqui), com horizonte de até 2035, dificilmente serão alcançadas se a empresa for privatizada, avalia Agamenon. “Descentralização, descarbonização, disrupção… Tudo isso só se alcança com tecnologia. A descentralização, que significa ter uma geração distribuída, tendência do sistema elétrico mundial, precisa de tecnologia, inclusive de sistema de gerenciamento.”
É praticamente consenso entre os pesquisadores que o Cepel, com a privatização, terá destino similar ao do CPqD. Ou seja, ficar sem financiamento público, esvaziado e sucateado. “Se a Eletrobras for privatizada, o Cepel pode olhar para o CPqD tristemente e dizer: eu sou você amanhã. É importante a gente olhar para o CPqD e ver que a trajetória pós-privatização é essa, inclusive a redução do investimento, que é mais ou menos igual ao do CPqD, R$ 250 milhões anuais, agora reduzidos a R$ 20 milhões.” Na Alemanha, compara o engenheiro, há 70 centros de pesquisa do mesmo porte que o Cepel, com 300 a 350 empregados, no setor de energia, que recebem anualmente 2 bilhões de euros.
Agamenon lembra que, logo que o governo federal anunciou a intenção de vender a Eletrobras, prometeu sustentar o Cepel por quatro anos, mas que nem esse compromisso existe mais. “Se o planejamento da Eletrobras não for para inglês ver, essas metas dificilmente serão atingidas, caso ocorra a privatização. A expertise que o Cepel desenvolveu em matéria de energia eólica, solar, é muito grande. Como vão entregar isso, fechar os laboratórios, jogar a expertise fora?” Se depender da sociedade civil, será difícil entregar esse patrimônio, lembrou Felipe Araújo, também diretor do Senge RJ, que fez a mediação do debate: “Estamos há três anos e cinco dias resistindo contra a privatização da Eletrobras.”
O Cepel tem vários laboratórios de ponta, como o de ultra-alta tensão, podendo operar com até 1.200 kV em corrente alternada e 1.000 kV em corrente contínua, o de supercondutividade, o de células a combustível, linhas de pesquisas em novas tecnologias como nanotecnologia e estudos avançados em Smart Grids (sistemas e
sensores interligados para o cenário da indústria 4.0). Reúne um conjunto de software e sistemas computacionais que fazem o gerenciamento dos sistema interligado (Sage); o New Wawe para o planejamento da operação dos sistemas hidrotérmicos, estimando custos dos estoques de água para avaliar a conveniência do acionamento
das usinas térmicas e a dinâmica de compensação com o sistema de chuvas, entre muitos outros. Esses e outros software foram desenvolvidos no Cepel e são adotados
por instituições como ONS, EPE e outras. Com a privatização e a possibilidade concreta do esquartejamento do Cepel, essas soluções podem passar de forma gratuita para empresas de consultoria brasileiras ou mesmo estrangeiras.
Com a criação do Centro, um conjunto de ensaios que eram feitos no exterior passaram ser realizados no Brasil. A reconfiguração da indústria do setor elétrico a partir do desenvolvimento tecnológico local, segundo dados da Finep, produziram para o país uma economia de US$ 50 milhões.
Privatização e o caso das telecomunicações
Da mesma maneira, nas telecomunicações, o CPqD, criado em Campinas (SP), em 1977, para assegurar suporte a uma indústria associada à integração dos serviços, deu origem a cerca de 80 empresas, destinadas a desenvolver tecnologias aplicadas a problemas específicos do país, conta Marcio Patusco, da Câmara de Inclusão Digital do Comitê Gestor da Internet (CGI.br). Entre os produtos nacionais gerados nessa época, estavam centrais telefônicas, soluções para a integração das comunicações por micro-ondas, circuitos integrados, centrais telex, redes de pacotes, fibras ópticas e laser, equipamentos terminais, o cartão indutivo para telefonia pública.
“Foram iniciativas importantes para dar ao país uma cadeia produtiva nacional”, afirma Patusco, destacando a relevância, na época, dos índices de nacionalização. Por exemplo, na década de 80, o custo por terminal de uma central de telefônica era de US$ 900. Até o desenvolvimento, pelo CPqD de uma central nacional, a Trópico, para 10 mil terminais. “Quando a Trópico entrou nas licitações, ao custo de US$ 250 por terminal, os fornecedores estrangeiros – Siemens, Ericsson, Standard Electric… – baixaram seu preço para esse patamar. Ou seja, tínhamos um dumping de preço por terminal, que foi quebrado por um produto nacional desenvolvido no CPqD, produzido por empresas brasileiras, dentro dessa cadeia produtiva propiciada pelo centro de desenvolvimento tecnológico da Telebrás.”
Com a privatização das telecomunicações, o CPqD tornou-se uma fundação de direito privado, com redução sistemática de verbas. O financiamento da instituição era originalmente feito pelo Fundo Nacional de Telecomunicações, formado por 2,5% da receita de todas as empresas, algo como R$ 250 milhões (ou US$ 49 milhões na época) por ano. O Fundo para o Desenvolvimento Tecnológico das Telecomunicações (Funttel), sucessor do FNT, arrecada das operadoras, em média, R$ 500 milhões por ano, mas só destina 10% ou menos desse total ao CPqD, ou seja, R$ 20 milhões em 2018, e caindo ano a ano, com recursos sempre contingenciados.
“Após a privatização, não houve uma preocupação com pesquisa e desenvolvimento na estrutura”, lembra Patusco. “A Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) e o Ministério das Comunicações entregaram a P&D para o mercado. Houve desnacionalização da área produtiva, as empresas começaram a fechar. O índice de atendimento da demanda pela indústria nacional caiu de 42%, na época da privatização, para 3%. E isso se traduz efetivamente na balança comercial de produtos de eletroeletrônica que, a partir dos anos 2000, começou a registrar déficits sucessivos, hoje na casa dos US$ 30 bilhões anuais.” Os grandes desenvolvimentos, diz o especialista, são conduzidos nas matrizes dos fornecedores: na China, no Japão, nos EUA, na Europa. “Como fomos os primeiros a privatizar, nas telecomunicações, é muito importante servir de alerta para outras áreas – energia, petróleo –, onde poderá acontecer da mesma forma, se não abrirmos os olhos.”
No caso de telecom, apesar das perdas, Patusco aponta três principais saídas para o setor: recursos, indústria, planejamento. Para começar, ele defende a aplicação efetiva do Funttel na sua finalidade original, o desenvolvimento e a pesquisa. Junto com ele, o Fust (Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações) e o Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações) foram criados na privatização para manter o setor funcionando minimamente. “O Funttel existe e não é aplicado para P&D; eventualmente, é contingenciado para pagamento de dívida do governo.”
Em outra frente, o especialista do CGI.br quer a retomada de uma política industrial para o setor. “Há necessidade de que isso seja re-instituído pelo Ministério das Comunicações, recriado recentemente, e que seja incorporado como uma política de incentivo a uma cadeia produtiva nacional de insumos de telecomunicações.” Também seria necessário, diz ele, um planejamento de médio e longo prazos, elaborado por Anatel e do Minicom, consultando entidades, empresas, academia, e revalidado anualmente. Uma medida que já foi sinalizada pelo TCU. E, para diminuir as distorções de atendimento, tanto regionais quanto sociais, Patusco quer o uso dos fundos, especialmente, neste caso, do Fust.
Resistência e rebeldia
Célio Bermann, da USP, chama a atenção para o contexto político geral e o papel em que historicamente confinar o Brasil. “Todo o debate da soberania e a criação dos centros de pesquisa são manifestações de rebeldia em relação ao que nos era imposto, desde a Segunda Guerra Mundial, quando se estabelece uma divisão internacional do trabalho, em que países como o Brasil foram definidos como produtores de bens primários de baixo valor agregado para servir às economias capitalistas e produtivistas, que passaram a depender desse fornecimento de alimentos e bens primários. Centros de pesquisa e a engenharia nacional tiveram, então, que buscar espaços para se afirmar e construir um projeto de país, que incorporasse a possibilidade de a tecnologia nacional oferecer autonomia.”
O mais angustiante hoje, afirma o pesquisador, é perceber que está sendo ‘passada a boiada’ no meio de uma pandemia que impossibilita reação popular. “Penso na possibilidade de ver uma avenida Rio Branco, uma Presidente Vargas, a Candelária, a avenida Paulista, o Vale do Anhangabaú, com 200 mil pessoas pressionando o Congresso Nacional para ver o impedimento ou a prisão deste que nos desgoverna.” Um desejo, diz Célio Bermann, que precisa ser viabilizado assim que as condições sanitárias permitam.
CONFIRA AQUI A ÍNTEGRA DO DEBATE REALIZADO NO CANAL DO YOUTUBE DO SENGE RJ, DIA 26 DE AGOSTO DE 2020