A Bravi-Brasil Audiovisual, entidade que reúne cerca de 600 produtores independentes, entrou com ação no Supremo Tribunal Federal (STF) denunciando a inconstitucionalidade da decisão da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) que desobriga os canais de TV pagos, caso sejam transmitidos pela internet, de cumprir as regras da Lei do Serviço de Acesso Condicionado ( Lei 12.485/2011 ou Lei do SeAC), criada para o serviço de TV por assinatura. Essas regras incluem, por exemplo, compromisso com a veiculação de percentual mínimo de conteúdo nacional e independente e a inclusão nos pacotes, sem custo adicional, dos canais públicos (TV Câmara, TV Senado, TV Justiça e tevês comunitárias).
“É uma tragédia, com o maior impacto na identidade nacional, completamente a descoberto”, afirma Teresa Trautman, fundadora e diretora geral do Cine Brasil TV, canal dedicado à produção brasileira independente, que participou de debate virtual promovido pelo Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), no dia 16 de setembro. Para o presidente da Bravi, Mauro Garcia, a atitude da Anatel “é uma afronta à soberania nacional”. Um ato “criminoso”, diz Marcello Miranda, do Instituto Telecom. O diretor de Comunicação do Seneg RJ, Miguel Sampaio, que conduziu a conversa, observou que “tudo neste governo ataca a soberania do país”.
No Congresso Nacional, o deputado Paulo Teixeira (PT-SP) também reagiu e apresentou um Projeto de Decreto Legislativo 403/20 para sustar os efeitos da decisão da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel). O parlamentar lembrou que a própria Procuradoria Federal da Anatel emitiu parecer alertando que a Lei do SeAC estabelece a abrangência do conceito de TV por assinatura para qualquer plataforma tecnológica, segundo informa a Agência Câmara. “A internet representa apenas mais um dos meios possíveis de suporte para a distribuição paga de conteúdos”, argumentou.
Marcello Miranda, presidente do Instituto Telecom e diretor do Sindicato dos Trabalhadores em Telecomunicações (Sinttel-Rio), ressalta que o art. 2º, inciso XXIII da Lei do SeAC “deixa muito claro, com todas as letras, que não importa qual a plataforma que vai transmitir o conteúdo, se celular, computador, internet, se for canal avulso, pacote, de qualquer maneira, é um Serviço de Acesso Condicionado, e coberto pela lei”.
Em outras palavras, “é a natureza do serviço – disponibilização de conteúdo audiovisual sob a forma de canais (conceito que, nos termos do art. 2º, IV, da Lei 12.485/2011, caracteriza-se precisamente pela linearidade), avulsos ou organizados em pacotes – que define o serviço, não a tecnologia pela qual se dá a distribuição ao consumidor final”, lê-se no editorial publicado, dia 15, pelo Instituto Telecom.
Perda de R$ 3,7 bilhões na arrecadação
Com a possível migração generalizada do TV por assinatura para a internet, fragilizando o modelo de radiodifusão convencional, os parlamentares estimam que as operadoras deixariam de pagar R$ 3,7 bilhões para os cofres públicos, devido à diferença de incidência tributária, avaliam parlamentares. Enquanto a TV paga tradicional recolhe ICMS, Fust, Funttel e Condecine ((Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, que incide sobre os negócios com audiovisual para formar o Fundo Setorial do Audiovisual), os serviços de streaming na internet arcam apenas com o ISS.
Há o risco, contudo, de nem esse imposto ser cobrado. “Poder oferecer canais na internet não é só para sair das tevês por assinatura, significa a possibilidade desses canais serem ofertados diretamente da sua origem”, alerta Mauro Garcia, que também é membro titular do Conselho Superior de Cinema e do Conselho Deliberativo da SET, além de associado da Academia Brasileira de Cinema. “É outra lesa-pátria, que vai prejudicar os consumidores. Os canais virão diretamente de Miami, do exterior. Não recolherão a Condecine, nem impostos no Brasil, e vão lesar a União, estados e municípios. As pessoas não estão atentando para isso e vão permitir que esses canais cheguem diretamente da sua origem, sem qualquer tributação.”
“O que a Anatel fez foi mais uma vez baixar a cabeça para o grande mercado”, critica Marcello. “Quando falo grande mercado não é só a Rede Globo. Há interesse do Facebook, da Disney, da Fox… Todos esses atores, a Telefónica, a Oi, pressionaram intensamente a Anatel, e a agência acabou concluindo dessa maneira, que pode prejudicar intensamente a produção de conteúdo audiovisual nacional.”
Setor gera 130 mil empregos
O mínimo legal de conteúdo nacional — três horas e meia por semana, das quais cerca de metade, 1% de toda a grade de programação (ou uma hora e 45 minutos, para produção independente) –, embora ínfimo, gerou, nesses nove anos em que as regras estão em vigor, uma fortíssima economia do audiovisual brasileiro, com mais de 130 mil empregos e 13 mil empresas ativas, nas contas da Bravi. “Com a lei, vimos ser agregados mais de R$ 25 bilhões por ano à economia nacional”, estima Marcello Miranda. Um salto na produção, diz ele, de dez filmes para até 200 longa metragens por ano.
Para uma obrigação legal de 1% da grade, a produção independente chega, atualmente, a quase 20%, calcula Teresa. Ela acredita que a lei tenha promovido um incremento de 6 mil a 7 mil horas de produção local por ano ano.
Mauro Garcia destaca, ainda, a geração de renda indireta, associada à atividade. Uma equipe de filmagem de um longa que vai ser gravado numa cidade do interior, por exemplo, além dos empregos da própria produção, vai consumir serviços de transporte – avião, carro — , alimentação, hospedagem, pessoal de apoio etc. “Assim como turismo, é um tipo de atividade que mobiliza vários setores econômicos. Nem todo mundo tem ideia do quanto a produção audiovisual movimenta economias, principalmente locais, em empresas que pagam seus impostos localmente e contribuem para seus municípios. Tem muita coisa em jogo”.
O presidente da Bravi conta que a ação no STF contra a decisão da Anatel será analisada pelo ministro Ricardo Lewandowski, que, no momento, aguarda pronunciamento da Procuradoria-Geral da República (PGR), para dar andamento ao caso. Espera-se que a pauta também seja pauta de uma audiência pública no Congresso Nacional.
Em resumo, explica Teresa Trautman, a lei da tv paga estabeleceu cota da produção independente na tv por assinatura; criou um financiamento à produção independente, por de um percentual retirado do Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações), e um ente regulador desse segmento, a Ancine. “Três coisas fundamentais e que estão na Constituição”, diz. “A valer a decisão da Anatel, a identidade nacional, a soberania nacional, vai ficar em falso. A produção independente vai deixar de ser financiada. O que a Anatel fez foi se eximir, tirar o corpo fora. A Ancine, pior ainda. Em nenhum momento pegou essa bola, que é dela. Não disse ‘- espera, o artigo segundo, inciso 23, da lei prevê sua aplicação em todas as tecnologias. Bastava isso. O mais importante não é discutir a tecnologia e sim cumprir a Constituição.”
Perda de identidade
“Quem tem medo dessa cota brasileira? Pelo amor de Deus…”, provoca Mauro Garcia, lembrando que há países com otas nacionais de 20%, 30%, de toda a oferta de conteúdo. “Os países, principalmente europeus, têm cotas muito maiores, estão zelando pela renda e pelos empregos da sua sociedade, pela sua língua e pela sua cultura.” Segundo o presidente da Bravi, junto com a desidratação da produção, o desmonte da lei da tv paga também vai prejudicar os canais independentes e criar muitas indefinições no modelo.“Vão oferecer os canais em duplicidade? Dentro e fora das operadoras?”, questiona.
Marcello Miranda nota que os interesses da Fox no mercado brasileiro e sua resistência a aceitar a lei da TV paga estiveram na pauta das conversas do presidente Jair Bolsonaro com Donald Trump, na sua visita aos EUA. E que, ao contrário do que tentam acenar aos consumidores, a desconstrução do modelo não deve baratear o serviço para o usuário final. A aquisição separada dos canais, online, vai acabar saindo mais caro, acredita ele.
Contra esse servilismo cultural, Teresa defende a reação dos produtores de audiovisual, que já estão em situação “falimentar”, devido aos impactos a pandemia de covid-19. “Eles têm que se preparar e lutar. Sair da zona de conforto, de isenção, e ir pro proscênio lutar pela nossa identidade. (…) Os produtores precisam ganhar consciência de que não vai ter dinheiro para produzir nem onde [veicular]. Devemos mostrar claramente no STF que a Constituição está sendo descumprida, está ao relento. Deveríamos aumentar o escopo dessa discussão. Estamos falando de identidade nacional, uma questão que você não deixa na mão do mercado.”