Radiografias do Fascismo #03: “Em tempos de crise, é preciso uma esquerda sem medo de ser o que é”, diz José Genoíno

Após detalhar os mecanismos e ferramentas de domínio e conquista de corações e mentes usados pela extrema-direita, ex-presidente do PT critica a submissão ao “credo neoliberal”, as amplas alianças e os discursos sem ação concreta

“Para governar em uma crise, é preciso tensionar a corda. Mesmo que não tenhamos força para rompê-la, precisamos tensionar.” O alerta é de José Genoíno, militante histórico e ex-presidente do Partido dos Trabalhadores, expositor da terceira palestra do ciclo Radiografias do Fascismo, promovido pelo projeto SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ). Ex-deputado federal por seis mandatos, Genoíno tem se dedicado à formação política e à militância nas bases, participando de eventos e lives, nos quais vem defendendo a importância da polarização à esquerda para o enfrentamento da barbárie da extrema-direita.

O cenário apresentado por Genoíno é de uma crise sistêmica da democracia liberal, de caráter global e multifacetada, que não será vencida sem o enfrentamento de sua causa mais basal: o sistema neoliberal. Esse enfrentamento, segundo ele, não vem surtindo efeito ao ser conduzido por dentro do próprio sistema.

A rebeldia no enfrentamento, que já foi marca da esquerda, hoje instrumentalizada como farsa pela extrema-direita, precisa ser retomada: “O fenômeno da extrema-direita que vivemos não é passageiro. E ele tem que ser enfrentado a partir de uma posição anti-sistêmica. Se não enfrentarmos o sistema e seu credo neoliberal, acabaremos domesticados por ele”, alertou.

O neoliberalismo como alvo

O processo de ressurgimento e ascensão da extrema-direita, fundado na negação da política e nas alternativas que se apresentam anti-sistêmicas e autoritárias, nasce, aponta Genoíno, “das entranhas do neoliberalismo, na administração da crise do capitalismo”.

Esse fenômeno, ele destaca, é global e sistêmico: A linha do tempo que culmina na ascensão do fenômeno neofascista no Brasil e no mundo é a da última crise do capitalismo. Genoíno lembra que, no início do século XXI, o capitalismo se apresentava como eterno e inevitável. Promoveu uma onda de privatizações que varreu o mundo, seguida de outra de desregulamentações, levando a uma barbarização sem limites.

“As pessoas têm medo e se recolhem ao pessimismo, ao niilismo, ao individualismo, e a ideia de uma luta coletiva e social já não mobiliza corações e mentes”

“O capitalismo precisava reestruturar a relação entre capital e trabalho. Os fundos públicos foram capturados em uma tirania fiscal para a valorização da especulação financeira. O sistema está podre e só se sustenta por uma espécie de ‘credo’, que tem como bases o rentismo, as privatizações, as desregulamentações e, sua menina dos olhos, a tirania fiscal”, destacou.

A radicalização do rentismo, da acumulação de capital, das privatizações e desregulamentações, segundo Genoíno, levaram a uma degradação social, econômica e de valores coletivos, tirando de cidadãos e cidadãs a ideia de futuro possível. “Aí, ficam o ódio, o revanchismo, a vingança. Políticos são apontados como culpados e o voto é despolitizado. A extrema-direita, então, enquanto defende a essência desse sistema, se apresenta como anti-sistêmica. Ela aposta no caos, no anarcocapitalismo, no espetáculo para criar no povo arrebentado a ideia de que não vale a pena lutar. A geopolítica também se mostra vazia de institucionalidade, incapaz de impedir as atrocidades genocidas do governo de Israel. Somado à guerra da Ucrânia, isso anuncia que o futuro da humanidade é pavoroso. As pessoas têm medo e se recolhem ao pessimismo, ao niilismo, ao individualismo, e a ideia de uma luta coletiva e social já não mobiliza corações e mentes”, constata.

Um país a ser resgatado

Em sua leitura de conjuntura, Genoíno apresentou um país sequestrado. Destacou que, no Congresso, um parlamentarismo orçamentário segue instalado. Sob a constante ameaça de impeachment – um precedente criado no golpe contra a presidenta Dilma Rousseff – ou de paralisação de pautas consideradas fundamentais pelo governo, uma nova ordem fundamentada na chantagem abarca todas as instituições da república. “A institucionalidade fundada pela Constituição de 1988 foi violentada pelo golpe de 2016, pelas emendas constitucionais [sem transparência] e pela judicialização da política. O resultado é a negação da própria política e a busca da legitimidade por um caminho autoritário”, apontou.

A judicialização foi outra ferramenta importante para a corrosão da política no Brasil. Reflexo da transformação das instituições em espaços de gestão da democracia burguesa, o judiciário vem sendo instrumentalizado desde os anos 2000. Genoíno lembra que, em 2012, ele e outros quadros progressistas foram julgados em plena campanha eleitoral, com cenas transmitidas ao vivo pelo Supremo Tribunal Federal. Hoje, a Procuradoria Geral da República opta por não denunciar o ex-presidente Jair Bolsonaro para não influenciar o clima eleitoral.

“Passou o tempo de falar em curativos. Temos que falar de cirurgias. Vivemos uma época na qual é fundamental existir uma esquerda que não tenha medo de ser esquerda, de mostrar o futuro que ela prega.”

“A judicialização da política foi o primeiro passo para desidratar a luta de classes. Sem ela, o que sobrou foi coisa feia, corrupção. Isso levou a uma negação da política que culminou nas agências reguladoras, no Banco Central independente, na ideia de organizações livres da política. Porque nesse novo cenário, a política não pode contaminar a meritocracia na gestão pública. Quem domina essas agências é o deus do mercado, e vemos o quanto ele busca constranger o governo Lula para que assuma as políticas dele”, alertou o ex-parlamentar.

Foi o avanço dessa conjuntura, que começa com o Mensalão – a criminalização da atividade política – e encontra seu ápice na Operação Lava-Jato – onde os fins justificam os meios e um inimigo é definido e perseguido antes do julgamento –, que enterrou a democracia liberal, aponta Genoíno. “Não por acaso, os grandes partidos da Democracia Liberal, o MDB, Cidadania, PSDB, PFL et caterva foram derrotados. Promoveram o golpe, mas quem ganhou foi a extrema-direita, que produziu um candidato que nasceu na AMAN e que aparece como um resgate da ditadura militar”, destaca.

A saída é pela esquerda

“Passou o tempo de falar em curativos. Temos que falar de cirurgias. Vivemos uma época na qual é fundamental existir uma esquerda que não tenha medo de ser esquerda, de mostrar o futuro que ela prega. O credo neoliberal só pode ser enfrentado assim”, defendeu Genoíno. O ex-deputado soma sua voz à de outros nomes da esquerda que apostam na polarização e no enfrentamento ao neoliberalismo, sem conciliações.

Entre os caminhos apontados estão as ações imediatas, o tensionamento de forças, a formação de alianças pontuais com a direita democrática e a defesa de um projeto de esquerda sem medo de derrotas. “Em um quadro de crise sistêmica, se governa em terreno minado. É preciso pronta resposta. Além disso, nós podemos conviver, mas não aceitar a legitimidade do rentismo, das privatizações, da tirania fiscal. Podemos até não ter forças para mudar, mas aceitar é diferente. Precisamos propor saídas, mesmo que percamos”, defendeu Genoíno, completando: “Para quem quer resolver esta crise, não vai adiantar falar dela. As pessoas já vivem os seus efeitos, já a conhecem. É preciso falar e apresentar alternativas. Podemos até ser derrotados, mas ganhamos corações e mentes”.

 

Rodrigo Mariano/Senge RJ | Fotos: Felipe Varanda

 


 

Veja também as palestras anteriores do ciclo:

O Fascismo Estrutural, com Michel Gherman


Colonialismo e Racismo, com Breno Altman

 

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