Retrocessos, falta de transparência e invisibilização de populações vulneráveis marcam a aprovação do novo Plano Diretor do Rio

Na madrugada de 12/12, após uma sessão de 10 horas, a Câmara Municipal do Rio de Janeiro aprovou por 37 votos a 10 o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável. Apesar dos dois anos de debates, o final do processo foi açodado, com uma votação, a toque de caixa, de um texto que nem mesmo os vereadores tiveram tempo de conhecer por completo.

A primeira versão, aprovada em junho, passou por profundas modificações através de emendas dos vereadores e do executivo municipal. O IBAM (Instituto Brasileiro de Administração Municipal), contratado para auxiliar tecnicamente no processo, descartou emendas consideradas inadequadas para a cidade ou que eram contrárias a dispositivos legais vigentes, como o estatuto da cidade.

As comissões de Justiça e Redação, Orçamento e Fiscalização Financeira e Especial do Plano Diretor decidiram, em seis dias úteis, quais emendas iriam a plenário. Das 1.236 emendas apresentadas, 478 foram a votação, 128 a mais do que as tecnicamente referendadas pelo IBAM.

O texto final, com pelo menos o triplo do tamanho da versão de junho, não teve a publicidade necessária para que a sociedade civil participasse do processo, e nenhuma audiência pública foi realizada antes da votação para apreciação e debate. O parecer conjunto sobre as alterações foi publicado no Diário Oficial em 08/12, e a votação começou em 11/12, dando à sociedade civil e aos parlamentares apenas dois dias (sábado e domingo) para se familiarizarem com as quase 500 emendas antes da votação.

Votação “angustiantemente bizarra”

Para Regina Chiaradia, vice-presidente da FAM-Rio (Federação das Associações de Moradores do Município do Rio de Janeiro), o resultado não foi bom e o final do processo teve ares de surrealismo. 

“Nem os vereadores sabiam o que estavam votando. Cheguei lá pela manhã, passei a tarde e entrei pela noite. E o que eu vi nesse tempo foram os vereadores totalmente perdidos. Caiado (Carlo Caiado, presidente da Câmara) dizia ‘vamos suprimir a emenda x’ e todos se olhavam. Ninguém fazia ideia do que se tratava. Então, ele seguia ‘todos aprovavam?’, e os vereadores levantavam a mão. ‘Aprovado’, ele anunciava, e seguia. Foi angustiantemente bizarro assistir aquilo”, lamenta Chiaradia.

Regina destaca que, embora parlamentares argumentem que o projeto foi debatido com a sociedade civil por dois anos, nada explica uma versão final decidida em um fim de semana, sem que ninguém tivesse tempo de participar do debate.

“As emendas foram publicadas na quinta e o parecer do IBAM, na sexta. A votação foi na segunda. Nem nós nem eles leram o que votaram. Só usando inteligência artificial para dar conta da pegadinha que eles produziram ali. Lutamos pelo adiamento da votação para que pudéssemos tomar conhecimento das alterações, apresentar pedidos de retiradas de apoio das emendas. Mas eles não escutam a população”, destaca a ativista.

Luta desigual

Na correlação de forças que permeou a votação do projeto mais importante do legislativo municipal do ano de 2023, há muitos vetores. Um deles, no entanto, é difícil de ser enfrentado: a força do mercado imobiliário. Com a aproximação do recesso de fim de ano – os vereadores entraram de férias dois dias depois da aprovação do Plano Diretor – a pressa se estabeleceu, atropelando, inclusive, a decência.

“O mercado queria bater o martelo. Precisava fazer isso justamente para que ninguém tivesse tempo de encontrar os ‘jabutis’ que eles colocaram nas centenas de emendas”, destaca Regina, que também aponta um crescente distanciamento da Câmara de Vereadores da sociedade civil e a dificuldade em se contrapor a interesses que são alimentados por muito dinheiro.

“O jogo é muito duro. Do lado de lá, há vereadores com assessores cedidos pela Ademi (Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário), pelo Sinduscon (Sindicato da Indústria da Construção Civil), regiamente remunerados e dispostos a trabalhar noite e dia para elaborar e incluir emendas que atendam os interesses do mercado. Do outro lado, temos apenas a nossa militância por uma cidade mais justa e inclusiva. Por trás de um verniz de democracia participativa, os vereadores foram déspotas. Não ouviram ninguém, não deram a mínima importância para as emendas populares e os questionamentos que encaminhamos. Temos uma câmara voltada para o mercado, garantindo o retorno de investimentos feitos por ele, que banca as campanhas”, lamenta.

A FAM Rio segue trabalhando para identificar as emendas mais absurdas para, antes da sanção do prefeito Eduardo Paes, em janeiro, fazer denúncias à imprensa, na esperança de melhorar o texto.

Para a próxima década

A nova lei do Plano Diretor, que guiará o desenvolvimento urbano do Rio de Janeiro pelos próximos 10 anos, traz uma série de mudanças, algumas delas gerando intensos debates durante a longa sessão de aprovação.

O novo zoneamento do município introduz sete macrozonas de ocupação: Estruturação Urbana, Desenvolvimento Estratégico, Redução da Vulnerabilidade, Controle da Ocupação, Requalificação Urbana, Proteção Integral e Uso Sustentável. No centro dos debates estava a Outorga Onerosa do Direito de Construir, além de emendas apresentadas pelos vereadores Carlos Bolsonaro (Republicanos) e Alexandre Isquierdo (União), que retiraram do texto as diretrizes voltadas aos grupos mais vulneráveis: negros, LGBTQIA+, indígenas e população em situação de rua.

A vereadora Mônica Cunha, da bancada do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) na Câmara Municipal do Rio, destacou, em sua conta no X, que a exclusão das diretrizes é a “afirmação de que as políticas públicas para o desenvolvimento da cidade serão feitas sem considerar a vulnerabilidade real dos segmentos que mais necessitam. É uma demarcação ideológica de quem odeia o diverso, de quem não se importa com o humano, de quem não está nem aí para as desigualdades sociais constituídas sobre a cor da pele, sobre o gênero ou sobre a orientação sexual”.

Enquanto a população vulnerável é excluída dos planos urbanísticos, outras medidas privilegiam grupos específicos. Destaca-se a permissão para a abertura de clubes de tiro em toda a cidade, desde que fora de áreas habitacionais, de proteção ambiental ou favelas, e a uma distância superior a 1 quilômetro de escolas. Essa inclusão ocorreu por meio de emenda a um artigo relacionado a casas de festa.

No que diz respeito à Outorga Onerosa do Direito de Construir – uma ferramenta da prefeitura para arrecadar recursos por meio de autorizações para construções acima do limite básico de edificação -, foi suprimida do texto a garantia de destinação dos recursos para o Fundo Municipal de Habitação de Interesse Social.

A ideia era que as construções acima dos limites mínimos – que aumenta diretamente os lucros do mercado imobiliário – pudessem garantir moradias para a população em situação de rua. Sem destino certo, os recursos poderão ser investidos onde a prefeitura julgar necessário, inclusive em áreas não essenciais para a população da cidade.

 

Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ
Com informações da Agência Brasil e Brasil de Fato
Fotos: Tania Rego/Agência Brasil, Rafael Campos/Governo do Rio, Rodrigo Soldon

Pular para o conteúdo