Com um histórico de momentos em que foi vanguarda em políticas habitacionais nas últimas décadas, era de se esperar que gestores públicos da cidade e do estado do Rio aproveitassem a experiência técnica acumulada em momento chave para a revitalização do centro urbano da cidade e região metropolitana. O que há, no entanto, dois anos após o início do Reviver Centro – plano da prefeitura para a recuperação urbanística, social e econômica nas áreas do Centro e Lapa –, é o sentimento de frustração entre os que denunciam a falta de vontade política para a inclusão de moradias de interesse social nesse processo.
A legislação, que tem como objetivo aumentar a densidade populacional dos bairros centrais com pessoas interessadas em viver mais perto do trabalho, com fácil acesso às infraestruturas de transporte, serviços, cultura, saúde e lazer já instaladas, tem, na prática, atraído fundos imobiliários que aportam seu capital naquilo que mostra maior potencial de venda e remuneração para seus investidores. Resultado direto disso, os lançamentos imobiliários na região do Centro são hoje, em sua maioria, unidades compactas em condomínios modernos, equipados com diversos serviços – como academia, piscina, coworking e cinema –, com o valor do metro quadrado equivalente ao de áreas nobres da cidade.
“É uma financeirização da habitação, um processo relativamente novo que impõe um ciclo de reprodução de produtos com esse padrão, que vendem rapidamente. A legislação incentiva determinadas ocupações e tem do mercado uma resposta de acordo com os seus interesses: o retorno financeiro dos investimentos. Falta uma Operação Urbana, que irá além dos incentivos, estabelecendo perímetros, subsídios cruzados etc”, destaca Pablo Benetti, presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU), convidado do programa Soberania em Debate do último dia 03 de agosto.
Os dados levantados nas áreas abrangidas pelo plano comprovam a inadequação entre o foco no lucro e o repovoamento do Centro do Rio. Benetti aponta que das 23 licenças concedidas, 1994 unidades licenciadas e três novas edificações, apenas 14% têm entre 52 e 70 metros quadrados, consideradas ideais para apartamentos de dois quartos. Empreendimentos de três quartos, entre 80 e 110 metros quadrados, mais caros, correspondem a 22% das licenças. A maioria, alcançando 64% das unidades, têm de 32 a 50 metros, com predomínio na faixa dos 30 metros quadrados. São pequenos estúdios que não se destinam à moradia de famílias.
“Um empreendimento na Avenida Presidente Vargas, por exemplo, vende o estúdio de 32 metros quadrados por R$276 mil, com um metro quadrado de 8.625 reais. É um valor altíssimo. Outro, na Rua Irineu Marinho, tem um metro quadrado de R$7.700. Esses são os mais baratos dentro dos que pesquisei. O mesmo ocorre em lançamentos na Visconde de Inhaúma e na Senador Dantas, com quase R$13 mil e R$10.700 por metro quadrado, respectivamente. Esses produtos definitivamente não se destinam a habitações de interesse social”, evidencia.
Caminhos possíveis
Professor e ex-diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FAU/UFRJ), Paulo destaca que não faltam caminhos para corrigir os rumos do Reviver Centro. “Em diversas capitais do mundo, a renda de empreendimentos de luxo ou classe média alta vem sendo usada para financiar imóveis para habitações sociais. Isso é bastante comum. Há algumas iniciativas por aqui, mas são insuficientes para mudar a lógica da ocupação que já está acontecendo no Centro”, destaca.
O alerta de Benetti se soma ao de arquitetos, urbanistas, movimentos populares e sindicais, legisladores e gestores públicos que alertam para a impossibilidade de promover o adensamento populacional nos bairros centrais da cidade colocando todo o potencial habitacional daquelas áreas nas mãos do mercado imobiliário. Segundo Benetti, o Rio de Janeiro tem um grande número de imóveis do Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS), do Serviço Patrimônio da União, governo do estado e prefeitura que poderiam ser colocados no mercado, estimulando a mudança da lógica atual.
“O Rio de Janeiro tem um estoque imobiliário fabuloso de imóveis sobrados. São conjuntos urbanos típicos do final do século XIX e início do século XX que estão, em sua maioria, desocupados ou ocupados apenas no térreo. Um programa habitacional que incentivasse a ocupação desses imóveis já seria um caminho. Que contemplasse todas as formas de produção habitacional, como pequenas cooperativas, movimentos de moradia autogestionários, pequenas empresas de construção. Há imóveis no Centro do Rio de todos esses tipos e cada um deles poderia sediar um modo específico de produção imobiliária. Muitos deles são próprios federais, estaduais ou municipais”, aponta Benetti.
O professor alerta, ainda, para a importância de incluir no plano as pessoas que moram em ocupações. “Dados do Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado mostram que existem 35 ocupações na área do Reviver Centro. São pessoas que estão fazendo valer a função social da propriedade, ocupando um imóvel e pensando na possibilidade de um financiamento para permanecerem ali em condições dignas.Com um programa de crédito e a atuação do CAU e do Instituto de Arquitetos do Brasil contribuindo com a documentação técnica, seria possível fazer as reformas”, destaca.
As ações, aponta Benetti, deveriam ser geridas pela Secretaria de Habitação do Município, mas não há um programa do órgão elaborado para a área central concomitante com o Reviver Centro. Em maio, o Reviver Centro recebeu mais benefícios, como isenção total do Imposto de Transmissão de Bens Imóveis (ITBI) e ampliou sua área para abranger a Cinelândia, Castelo e Praça XV.
Plano diretor: uma chance de mudança
Com o plano diretor em debate na Câmara de Vereadores, há uma oportunidade para garantir recursos permanentes para programas de habitação. Benetti lembra que não é preciso inventar a roda: “A outorga onerosa é usada no mundo inteiro. Fica estabelecido um coeficiente de aproveitamento para a cidade e o que for construído acima disso contribui para um fundo. Se 50% desse recurso fosse para um fundo de habitação, nós revitalizaríamos o Centro rapidamente”, defende.
Enquanto o Plano Diretor é debatido por legisladores e sociedade civil na tentativa de impedir a ampliação da desigualdade social na ocupação da cidade, tanto estado quanto município aguardam a destinação de recursos do programa Minha Casa Minha Vida, agindo como interlocutores com o governo federal, apontando os espaços onde os investimentos podem ser feitos.
“Estamos vindo de tempos de seca total, tanto em âmbito federal quanto estadual, sem um centavo investido em habitação. O governo estadual está investindo alguma coisa, mas é algo tímido em face do déficit habitacional, 7,7% dele concentrado na área central. Poderíamos ter um espaço de atendimento a essa demanda enorme e o caminho pela Câmara de Vereadores é esse: ela aprovar um Plano Diretor que garanta que a cidade é para todos, não para poucos. A área central é, por excelência, o espaço dessa interação entre setores, atividades e diferentes faixas de renda. Eu fico muito triste e frustrado por ver uma cidade que importou o Favela Bairro para a África e toda a América viver isso agora, mas ainda dá pra mudar”, finaliza Paulo.