*Por Jorge Folena
Somente a pior legislatura da história brasileira, em todos os tempos, se atreveria a debater e apresentar proposta de anistia para (sic) “apologia de crimes ou criminosos, organização criminosa, associação criminosa, ou constituição de milícia privada.” Ou seja, sem nenhum pudor, bolsonaristas e alguns integrantes do “centrão’ defendem abertamente a anistia, não apenas para os violadores da Constituição (o que, por si só, torna inconstitucional a pretendida anistia), mas também para o crime organizado e milicianos.
Pelo visto, o parlamento foi assaltado pela escória, que defende criminosos que aterrorizam o país e tentam apagar a democracia por meio do terror, da violência e da crueldade, mediante ações de um crime organizado que, durante o período proposto para a sonhada anistia (a partir de março de 2019, no início do governo do ex-presidente incorrigível), ganhou força e se instalou em várias instituições, no mercado financeiro e em outras atividades empresariais, como apurado pela “Operação Carbono Oculto”, deflagrada pela Polícia Federal e Ministério Público de São Paulo.
É importante ressaltar que a referida operação policial, conduzida pela Polícia Federal contra o PCC e seus enraizamentos no sistema financeiro, comprovou a realidade da preocupação do presidente Lula, manifestada em entrevista à Rádio Itatiaia de Belo Horizonte em 29/08/2025, principalmente porque o governo anterior trabalhou sistematicamente para que o Poder Público deixasse de intervir na ordem econômica, abrindo caminho para que o crime organizado e as milícias ampliassem seus empreendimentos e atuassem livremente em diversas atividades.
Daí a responsabilidade do governo anterior pela ampliação do crime organizado, apontada pelo presidente Lula, que afirmou que as investigações poderão chegar ao ex-presidente, não porque ele esteja, em princípio, ligado diretamente a facções criminosas, mas porque estabeleceu no seu governo os mecanismos de não fiscalização e não intervenção do Poder Público e promoveu o desaparelhamento da Receita Federal do Brasil e do IBAMA. Desse modo, o governo anterior permitiu a ausência de fiscalização sobre o trabalho escravo; fez “vista grossa” para a exploração de garimpo em territórios indígenas; ignorou o tráfico de drogas na Amazônia etc.
Porém, quando parlamentares da extrema direita e do “centrão”, apoiadores do ex-presidente, estão preocupados em estabelecer anistia até mesmo para a prática dos crimes de organização criminosa e milícias privadas, é porque algo muito grave ocorreu e pode estar prestes a ser desvendado, instalando-se entre eles o pânico geral e conduzindo ao abuso e ao desvio do poder de legislar por parte da maioria do legislativo.
“Maioria” parlamentar essa que, não por acaso, tem promovido frequentes desvios do poder de legislar, ao elaborar , por exemplo, medidas legislativas em defesa do “pacote da impunidade”, construído pela aliança entre a bancada bolsonarista e do “centrão”, para beneficiar a si e aos líderes golpistas do 8 de janeiro de 2023.
Esse “pacote”, além das inconstitucionais propostas de anistia para os golpistas violadores da Constituição e para o crime organizado e milícias privadas, pretende alterar a Constituição para garantir que os parlamentares somente sejam processados criminalmente mediante autorização do parlamento; a decretação de prisão em flagrante de parlamentar ocorra apenas nos casos de crimes inafiançáveis, previstos na Constituição; as ordens judiciais contra parlamentares sejam cumpridas apenas dentro do parlamento, mediante autorização legislativa.
Finalmente, para garantir a impunidade total, esse “pacote” estabelece o fim do foro de prerrogativa de função, de modo que o STF deixe de julgar Suas Excelências e o ex-presidente, acusado de tentativa de golpe de estado e investigado em muitos outros delitos (como peculato e evasão de divisas), que estão sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.
Assim, esses projetos constituem verdadeiros abusos do poder de legislar, exercido por uma “tirania da maioria”, que deseja conceder anistia para o crime organizado e milícias privadas, reduzir as competências do STF (previstas na Constituição de 1988) e introduzir alterações que constituem violação às cláusulas pétreas do Estado Democrático de Direito e da separação de poderes e do princípio constitucional da impessoalidade, na medida em que pretendem alterar a Constituição para alcançar finalidade diversa do interesse público e para atingir benefícios particulares de outros e de seu grupo político.
Na verdade, o objetivo do grupo de parlamentares que propõe esse tipo de medida é obter “benefícios de interesse de cunho privado”, conforme já analisado pelo STF no julgamento da ADPF 850, quando o Tribunal enfrentou o orçamento secreto, em que os parlamentares estavam sob a acusação de apropriação do orçamento para fins diversos do interesse público, como destacado no voto conduzido pela ministra Rosa Weber, o que constitui grave atentado à República.
O desvio de finalidade e o abuso de poder foram apurados e rejeitados pelo STF no julgamento da ADPF 964, em que se questionou o indulto concedido pelo ex-presidente/réu em favor do seu correligionário Daniel Silveira:
“A teoria do desvio de finalidade aplica-se quando o agente público competente pratica ato de forma aparentemente lícita, mas com objetivo de atingir fim diverso do admitido pelo ordenamento jurídico, importando em violação de princípios constitucionais”.
Assim, a extrema direita bolsonarista e parte do “centrão”, num claro desvio do poder de legislar, estão ultrapassando concretamente os limites do Estado Democrático de Direito ao advogarem, de forma insistente, pela anistia para criminosos que atentaram contra a Constituição e para os que aterrorizam o país por meio do crime organizado e milícias privadas, que passaram a ocupar espaços nas instituições públicas (visando atuar na formulação de políticas de seu interesse) e em atividades empresariais e financeiras, estabelecendo negócios de fachada para legitimar seus ganhos.
Na verdade, esses parlamentares usurpam a representação que lhes foi conferida pelo voto dos cidadãos, deixando claro, parafraseando Chico Buarque, que a nossa pátria-mãe segue sendo distraída pelos factoides e fake news, no grande circo montado para que o povo não perceba o quanto a nação é, há décadas, subtraída em venenosas transações, facilitadas pelos traidores da cidadania e da soberania.
* Folena é advogado e cientista político. Secretário geral do Instituto dos Advogados Brasileiros e Presidente da Comissão de Justiça de Transição e Memória da OAB RJ.
Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil