Sem políticas de manutenção do conhecimento, perdemos a área nuclear aos poucos

A falta de renovação de quadros técnicos e as contratações de serviços e consultorias externas podem custar ao Brasil a perda do conhecimento no setor, com impacto direto em áreas importantes como saúde, alimentação e energia.

O conhecimento nacional na área nuclear não veio de graça. Foram investidos bilhões de reais em uma parceria entre Brasil e Alemanha para que a transferência de conhecimento acontecesse, na década de 1970. O enriquecimento de urânio só veio anos mais tarde, em 2004, a partir do desenvolvimento de tecnologia nacional. A partir dessa conquista, o Brasil passou a integrar o seleto grupo de países que dominam todo o ciclo do combustível nuclear. “Mas, conhecimento não fica em prateleiras e documentos. O domínio da tecnologia está na cabeça das pessoas. À medida que elas se aposentam ou morrem, se não há investimento na gestão deste conhecimento, vamos perdendo esse knowhow”. O alerta é do físico e engenheiro nuclear Gunter Angelkorte, diretor do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro – Senge RJ, entrevistado do programa Soberania em Debate do último dia 28 de setembro.

Funcionário da Eletronuclear desde 1978 na área de Física de Reatores/Neutrônica, Gunter aponta a urgência da criação de um programa de transferência de conhecimento que poderia ser financiado pelo próprio faturamento da Eletronuclear, que chega a pouco mais de R$ 4 bilhões por ano. “Para isso, é preciso uma mudança nas políticas de gestão da empresa, que poderia ser instituída pelo Governo Federal”, destaca Gunter.

A iniciativa viria do Governo porque, como explica Gunter, a Eletronuclear, por deter o monopólio estatal na operação de usinas nucleares, escapou da privatização do sistema Eletrobras, bem como as Indústrias Nucleares Brasileiras – INB, que detém o monopólio da prospecção, exploração e fabricação de elementos combustíveis. Essa mudança, no entanto, não precisaria onerar os cofres públicos. Além de um expressivo faturamento, a empresa contrata serviços de empresas que poderiam ser prestados por mão de obra da própria empresa.

“Precisamos de uma política de substituição do uso de consultorias externas pelos próprios engenheiros da Eletronuclear e por contratações de universidades e centros de pesquisa brasileiros, preservando o conhecimento tecnológico e promovendo a expansão de mão de obra qualificada para atuar nessa área”, defende o dirigente sindical.

Arraste tecnológico

Embora a primeira lembrança evocada pela tecnologia nuclear seja o seu uso energético, o setor vai muito além disso, graças às múltiplas aplicações da energia nuclear e seu grande arraste tecnológico: as tecnologias desenvolvidas transbordam para diferentes setores produtivos. É o caso dos radiofármacos e da medicina nuclear. “Há determinados tratamentos de câncer que, se não produzidos no Brasil, forçariam pacientes a buscarem tratamento no exterior, uma vez que a meia vida do material é de algumas horas”, apontou Gunter.

O físico também destacou as aplicações industriais, como a irradiação de produtos alimentícios e fraudas para a eliminação de germes e bactérias. A geração de empregos qualificados também foi apontada por Gunter. “São empregos de longa duração, com remuneração por volta dos dez mil reais, com todos os direitos garantidos. A Eletronuclear não adota práticas que violam normas trabalhistas. Ela respeita tranquilamente o piso salarial da engenharia, por exemplo. Só no Rio, mais de 50% dos processos trabalhistas se referem ao cumprimento do salário mínimo do engenheiro”, destaca.

No que diz respeito à energia, o potencial é gigantesco: o Brasil tem a sétima reserva de minério de urânio do mundo, mesmo com apenas 30% do seu território prospectado. Considerando as descobertas de empresas privadas que encontram urânio enquanto prospectam outros minérios, as reservas nacionais podem chegar a ser a terceira do mundo. “Mas ter as reservas é uma coisa. Explorá-las e transformar em energia é outra coisa”, destaca. O Brasil tem hoje duas usinas nucleares, em Angra dos Reis, e uma terceira em construção. As usinas respondem por 2% da energia gerada no país.

Os tempos, destaca Gunter, são outros e as trocas de conhecimento entre países é mais complicada. “Antes, tínhamos uma relação de parceria na transmissão de conhecimento entre Brasil e Alemanha. Tivemos acesso a usinas na Bélgica, Suíça, Suécia, Espanha. Participamos da recarga dessas usinas. Hoje, os alemães venderam todo o setor para a França e a relação conosco é apenas comercial, de cliente e fornecedor. A transmissão de conhecimento encontra muito mais dificuldade”, alertou. Para não perder de vez o domínio da área, depois de tanto esforço para dominá-la, a administração da Eletrobras precisa se mexer.


Texto: Rodrigo Mariano
Foto: Eletronuclear / Divulgação

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