No dia 1º de abril, quando o golpe militar de 1964 completa 60 anos, o Grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro (GTNM/RJ) entrega a 36ª Medalha Chico Mendes a Maria Criseide da Silva e Wellington Marcelino Romana. A militância do casal na luta por terra e moradia em Minas Gerais levou à prisão e tortura física e psicológica, após condenação de ambos em processo fraudulento que vem sendo contestado pelos movimentos sociais.
A homenagem assinada pelo Senge RJ, representado pelo seu presidente, Olímpio Alves Santos, tem o apoio de outras entidades e organizações da sociedade civil, grupos de pesquisa, instituições e pessoas físicas. A homenagem é uma iniciativa do Grupo de Trabalho Mulheres e Meninas Privadas da Liberdade, do Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura no Rio de Janeiro (CEPCT-RJ), vinculado à Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro.
A carta pode ser assinada por cidadãos e cidadãs que desejem registrar seu apoio aos presos políticos e à luta por terra, moradia e, sobretudo, por justiça. Clique aqui para assinar.
A cerimônia de entrega da Medalha Chico Mendes acontecerá a partir das 18h no auditório da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), símbolo de resistência contra a repressão. Antes das homenagens haverá ato em frente ao prédio onde funcionou o DOPS, na Rua da Relação,nº 40, às 15h. Após o ato, os manifestantes seguirão para o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, da FND/UFRJ.
Leia a homenagem na íntegra:
A luta contra o racismo e a tortura como práticas de Estado: uma homenagem à Maria Criseide da Silva e Wellington Marcelino Romana
O GT Mulheres e Meninas Privadas de Liberdade, parte do Comitê Estadual para Prevenção e Combate a Tortura do Rio de Janeiro, entende que é de extrema relevância a homenagem feita pela Medalha Chico Mendes deste ano à Maria Criseide da Silva. Maria Criseide é a representação exata do que é, pelo menos para nós, o significado da medalha Chico Mendes e o próprio Grupo Tortura Nunca Mais/RJ: a unificação da luta de ontem com o hoje, entendendo que ainda resta muito da ditadura e da escravidão. Casos como o seu, Maria Criseide, são a prova de que a exceção no país ainda é regra quando se trata de defensores de direitos humanos, pobres, de grupos étnico-raciais minorizados e, especialmente, aquelas e aqueles que lutam por terra e território.
A criminalização, a tortura e o morticínio seguem sendo a principal ferramenta do poder, que sempre operou em favor das elites, para impedir a concretização da luta popular por uma vida mais digna a todos e todas, como a luta que você e o Wellington travam pela moradia. E em poucos lugares isto é mais nítido que em Minas Gerais, terra que teve como projeto político inaugurar o primeiro presídio em cogestão privada, assumindo em definitivo que para o Estado e para o setor empresarial prisão é lucro. Prender garante a manutenção do capital na mão de quem já o tem e ainda permite que esses, de forma ainda mais violenta, explorem os trabalhadores de modo mais agudo. A prisão hoje comprova o quanto de uma transição leniente com o Estado e, principalmente, com as empresas que financiaram a barbárie, permite que ela continue seguindo intocada.
Ouvir a sua história, Maria Criseide, é lembrar que não é real a ilusão propagada de que não existem mais presas políticas. Existem e seguem sendo torturadas cotidianamente nas masmorras do sistema prisional. A sua homenagem hoje é fundamental porque nos lembra de uma reflexão que deveria ser inescapável: ainda há tortura, ainda há presos políticos, a luta para o fim dos porões da ditadura precisa se converter na luta pelo fim dos presídios da democracia.
A história de seu companheiro, Wellington, materializa também como, por meio de práticas racistas e que criminalizam a pobreza, o Estado oferece como resposta àqueles e àquelas que dedicaram a vida à luta por direitos a violência institucional, da remoção ao encarceramento. Mas a trajetória de pessoas como Wellington mostra que mesmo diante das tentativas do Estado de minar qualquer possibilidade de luta coletiva por direitos, ainda assim há quem resista e, mesmo privados de liberdade em um processo abominável, busquem construir estratégias para fortalecer a luta coletiva. Que seus livros possam ecoar, dentro e fora dos muros da prisão, para que outros possam também se organizar e resistir.
A barbárie imposta a lutadora Maria Criseide não é isolada, ela é parte do cotidiano das unidades prisionais, que seguem torturando mulheres sistematicamente com a violência sexual e com as nomeadas “rotinas” das unidades prisionais, manejadas para quebrar cada fragmento de singularidade, do corpo e da alma, que conformam cada uma das mulheres que por elas passam, seja como visitante, seja como presa. É fruto de um país que não tem a coragem política necessária para interromper a abominável revista vexatória, que nada mais é que estupro legitimado pelo Estado. A violência sexual, que acompanhou cada mulher negra escravizada, que esteve em cada centro clandestino da ditadura e que segue em toda e cada unidade prisional feminina.
É importante lembrarmos aqui que Minas Gerais segue sendo um dos estados com maior população prisional, 66.241 presos, dos quais 2,694 são mulheres, sendo 75% negras. E são casos como seu e de seu marido, Criseide, que comprovam como não existe nenhuma outra função para o sistema de justiça criminal que não tentar usar todas as ferramentas possíveis para quebrar a resistência de pessoas selecionadas pelas malhas do sistema. Que nos indica que o que estamos endossando, a cada vez que naturalizamos as grades, cercas, muros e celas, são sistemáticas violências irreparáveis como as que você sofreu. Que cada vez que ignoramos a prisão estamos aceitando um judiciário branco e masculino, elitista e conservador, não se sinta minimamente responsável ou seja cobrado sobre o seu papel determinante em cada violação e em cada morte no sistema prisional.
Mas são dias como o de hoje e especialmente a força da luta de pessoas como você, Maria Criseide, como Wellington, que nos fazem crer que os dias de sono tranquilo para a elite brasileira estão contados. É acima de tudo uma honra para nós podermos estar aqui hoje e prestar a homenagem que cada uma de nós acredita que deve chegar para toda e cada mulher presa, seja a que se engaja em múltiplas lutas, ou aquelas que lutam dia após dia para sobreviver. Nada do que possamos falar hoje é passível de dar de volta o tempo e impedir a violência que você passou, mas hoje pode tornar possível que todos nós aqui assumamos como prioridade a luta para que nem você e nem nenhuma outra mulher passe por isso novamente.
Hoje nós do GT Mulheres e Meninas Privadas de Liberdade nos unimos a você e a todos que já estão na luta para reverter a abjeta acusação e condenação sofrida por vocês, exigindo também que o judiciário cumpra o mínimo do papel constitucional que lhe foi atribuído de garantir não só a revisão criminal de modo urgente, mas a reversão da condenação, entendendo que a única decisão razoável possível é que vocês sejam reparados e o Estado condenado por, esses sim, crimes cometidos contra vocês. Nós mulheres não estamos livres e nem fora de perigo enquanto houver qualquer mulher presa.