Senge RJ e Clube de Engenharia cobram o poder público pela negligência com o déficit habitacional e apoio a famílias impactadas por catástrofes climáticas

Enquanto mais uma temporada de chuvas torrenciais se aproxima, políticas públicas para moradias de interesse social e de apoio a quem perdeu tudo em tempestades não são executadas pelo estado e municípios fluminenses

“Onde moram famílias, principalmente as periféricas, quando faltam engenharia, arquitetura e as obras devidas, o que sobra é tragédia”. A fala é de Pedro Monforte, diretor do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), na mesa de abertura da audiência pública da Frente Parlamentar de Prevenção às Tragédias e Defesa da Moradia Digna, em 29 de novembro.

Organizada pelo mandato do deputado Yuri Moura (PSOL), o evento reuniu na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, moradores de diferentes ocupações e comunidades do estado, as Brigadas Populares, o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto e o mandato da vereadora Thais Ferreira (PSOL).

Para falar dos aspectos técnicos e, destacadamente, desmentir as desculpas apresentadas pelos municípios e estados para não realizar obras que evitariam mortes e enormes perdas de patrimônio, o Senge RJ esteve ao lado do Clube de Engenharia,  que foi representado por seu presidente, Francis Bogossian. O governo do estado foi convidado, mas nenhum representante de suas secretarias compareceu.

A audiência tinha como tema central a covardia daqueles que, no poder, cientes de suas responsabilidades na prevenção de novas tragédias e na reparação de quem foi vítima delas, segue negligenciando um alerta que a ciência vem fazendo há décadas. A ausência de investimentos em políticas públicas para moradia segura, saneamento, desenvolvimento social e projetos de engenharia que, pelo mundo afora, são implementados para enfrentar as mudanças climáticas, evidencia que o tema só ganha relevância quando há tristeza e lamento a serem mostrados nos jornais da mídia hegemônica.

Cada enchente ou deslizamento pode ser previsto e evitado. Não falta domínio técnico e científico para isso. Também não faltam recursos. Mas a completa inexistência de vontade política na hora de pensar as prioridades para o orçamento público e de buscar caminhos para dar segurança à população mais vulnerável, segue uma lógica perversa que, entra governo, sai governo, permanece intocada.

“A maior parte das prefeituras, em especial da região metropolitana, baixada e região serrana do estado, áreas mais expostas aos desastres facilitados pelo clima, investem menos de 1% do seu orçamento em Defesa Civil. E, muitas vezes, sequer gastam esse 1% orçado. Como regra, nos municípios do estado do Rio de Janeiro, inclusive na capital, o que temos é a falta de políticas públicas para moradia digna, adaptação climática e obras de macrodrenagem”, destacou o deputado Yuri Moura.

Engenharia na luta

Quando cobrados por obras de prevenção, gestores públicos costumam apontar dificuldades técnicas. Justamente por isso, os engenheiros fizeram questão de estar presentes: ninguém melhor que os técnicos para mostrar que esses argumentos são, na realidade, desculpas sem base na realidade. e que, destacou Pedro Monforte, fazer esse enfrentamento é função social da engenharia. O também diretor do Clube de Engenharia e conselheiro do Crea RJ, criticou o descaso das prefeituras, responsáveis por organizar as famílias atingidas pelas catástrofes e executar a entrega do cartão Recomeçar.

Raríssimas em âmbito estadual e municipal, políticas públicas voltadas para as habitações de interesse social, mesmo as emergenciais, não são alcançadas por todos aqueles que precisam delas. Burocracia e descaso impedem o acesso de quem já perdeu o pouco que tinha em tragédias anunciadas há décadas.

É o caso do Cartão Recomeçar. Criado pelo decreto 46.936/2020, o programa tem o objetivo de auxiliar famílias fluminenses afetadas por desastres naturais. A ideia é recuperar a dignidade e ajudar na reconstrução da vida após eventos climáticos extremos. Presente em 31 municípios do estado do Rio, ele atende, só na capital, 8.052 famílias. Na prática, porém, outras milhares precisam do benefício, mas não o alcançam.

Não falta orçamento: em quase todos os municípios, há autorização de pagamento para um número maior de famílias atingidas, mas a burocracia e a má vontade do governo do estado são obstáculos enormes para quem já perdeu muito em enchentes e deslizamentos.

“Estamos pautando essa luta no Senge RJ. Precisamos cobrar ação do governo e dos órgãos técnicos responsáveis, mas também conscientizar os profissionais de engenharia para que eles entendam que a dedicação ao apoio a famílias de baixa renda, às comunidades, é parte do nosso papel na sociedade”, defendeu Monforte. Ele destacou que, como no caso da Defensoria Pública, que dá acesso a acompanhamento jurídico a quem não consegue pagar por ele, a engenharia e a arquitetura também precisam ser democratizadas.    

Responsabilidade do Estado

Francis Bogossian, presidente do Clube de Engenharia, voltou a apontar a saída que vem defendendo há mais de uma década: a criação de órgãos técnicos que disponham de profissionais dedicados a impedir novas catástrofes. O presidente do Clube destaca que não está inventando a roda: o órgão funcionaria como, no passado, funcionaram o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas e o Departamento Nacional de Obras de Saneamento, que foram fundamentais para que o país avançasse nesses temas.

“Um departamento de Prevenção e mitigação de catástrofes resolveria o problema de prefeituras que alegam não ter dotação orçamentária e equipe técnica para realizar as obras. Hoje, depois de perder a vida, a casa, o pequeno estabelecimento comercial, é preciso aguardar recursos do Governo Federal. Isso leva tempo, passa por toda a burocracia e, em alguns casos, quando chega à concorrência para a contratação das empresas para a realização das obras, acontece o que vimos em Petrópolis, onde a empresa escolhida tinha como atividade o transporte. A vencedora da licitação aluga caminhões. Não tinha nem um engenheiro na equipe”, declarou Bogossian.

Negligência orçamentária

Enquanto o poder público se mostra incapaz de prevenir – o que, aponta Francis, custaria de 2% a 10% mais barato que o gasto para mitigar os estragos -, o apoio imediato às famílias e os programas voltados às moradias de interesse social seguem insuficientes.

“Não foi à toa que, logo no início desta legislatura, lutamos muito pela manutenção do ‘Supera RJ’, que também atende várias famílias vitimadas pela tragédia e pela insegurança alimentar e nutricional. Foi preciso muita pressão para que o governo do estado pagasse o que devia e garantisse pelo menos mais duas parcelas antes da suspensão arbitrária do programa. O estado do Rio de Janeiro não possui programas sociais que atendam de fato as famílias. Quando há, como é o caso do programa Recomeçar, fazem de tudo pra não pagar a todo mundo que tem direito. São cadastros intermináveis, erros de gestão junto às prefeituras e outros obstáculos que estamos tentando superar juntos”, destacou Yuri.

O esforço coletivo pelo cumprimento pleno do programa Cartão Recomeçar vem sendo tocado pelos mandatos municipal de Thais Ferreira, estadual de Yuri Moura e federal do pastor Henrique Vieira, ao lado das Brigadas Populares e do MTST. Eles pedem a celeridade na entrega dos cartões antes que o verão, período em que as chuvas são mais severas, além de informações acessíveis sobre os recursos previstos e executados, o calendário de entrega dos cartões, o número de contemplados e os procedimentos necessários para acesso ao cartão, de forma transparente e acessível à população.

Representando o mandato da vereadora Thais Ferreira, a assessora Emily Carolina destacou que, apesar dos aportes federais e estaduais, as prefeituras precisam estar atentas à questão das moradias. Não é o costume: “Acabamos de passar pelas audiências sobre a Lei Orçamentária do município, que irá definir o orçamento do ano que vem. Os recursos para o Fundo Municipal de Habitação de interesse social é tão pequeno que não chegariam a 20 unidades de moradia. É chocante constatar que não existe nenhum interesse em fazer política pública de moradia com recursos da prefeitura. Este fundo foi conquistado depois de muita luta. Hoje, ele existe, temos um conselho, mas não há plano que contemple a realidade das famílias da cidade”, destacou.

Monforte destaca que há um corte de classe na questão, que fica óbvio para quem acompanha de perto famílias que vivem sob a ameaça constante de despejos ou da destruição causada pelas chuvas. “O Horto Florestal, no Jardim Botânico, abriga as moradias das famílias dos trabalhadores que construíram o bairro, ainda no império. Eles ocupam um lado da calçada. Do outro, estão mansões. Impressiona como, para as mansões, não há dificuldade técnica alguma, mas, para levar o básico para a comunidade, é sempre muito difícil. A violência do Estado é enorme e a negligência é uma das mais duras, porque mata em agonia, em etapas. Mas nós, trabalhadores técnicos, seguiremos resistindo e lutando com a força do povo”, afirmou o diretor do Senge.

 

Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ | Fotos: Mandato Yuri Moura

Pular para o conteúdo