Senge RJ e MTST: a regularização de habitações populares como oportunidade para uma nova engenharia

Em momento histórico de democratização da engenharia, construir espaços de participação cidadã na resolução dos problemas da população vulnerável pode transformar a relação da classe trabalhadora com a categoria

A mídia progressista repercutiu, no final do último mês de julho, uma articulação inédita que reuniu entidades nacionais e regionais das engenharias, da arquitetura e da educação pública com o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) para a regularização de uma ocupação no centro do Rio de Janeiro.

A entrega do estudo de viabilidade técnica para o empreendimento habitacional popular Povo Maravilha — elaborado pelo Núcleo de Arquitetura e Engenharia do MTST-RJ, em parceria com o Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), Conselho Regional de Engenharia e Agronomia do Rio de Janeiro (Crea RJ), Escritório Modelo de Engenharia Força Motriz da UFRJ e Instituto dos Arquitetos do Brasil (IAB-RJ) — marcou a participação direta das entidades da engenharia em um projeto voltado à justiça habitacional na cidade.

O projeto conjunto, que prevê a construção de 238 apartamentos de 42 m² distribuídos em 18 andares na Gamboa, representa, em uma dimensão mais ampla, um passo inaugural na aproximação entre as engenharias e as demandas das populações excluídas pela lógica mercadológica que expulsa os pobres dos grandes centros urbanos.

Para Pedro Enrique Monforte, diretor do Senge RJ, reposicionar a engenharia no contexto das demandas da sociedade civil e responder tecnicamente às carências mais urgentes da população é condição essencial para que problemas históricos do Brasil, como o déficit habitacional e a urbanização precária, possam ser finalmente enfrentados.

“Enquanto não construirmos um conceito de engenharia comprometido com o povo brasileiro, os desafios representados pelas favelas, pela urbanização e pela moradia jamais serão solucionados. Se engenheiros e engenheiras continuarem agindo como meros burocratas a serviço dos despejos, nunca resolveremos esses problemas”, afirma Monforte.

Uma janela de oportunidade para a função social da engenharia

Historicamente reservada aos filhos das classes alta e média-alta, a engenharia sempre esteve distante de grandes parcelas da classe trabalhadora do Brasil. A população de baixa renda, impossibilitada de pagar por seus serviços, só encontra a engenharia em cenários de conflito e dor — quando a profissão assina os papéis dos despejos.

As políticas públicas de acesso ao ensino superior promovidas pelos governos Lula começaram a mudar essa realidade. Pela primeira vez, estudantes das periferias se formam engenheiros e engenheiras. Chegam à profissão com vivências à margem da sociedade, enfrentando o racismo, a aporofobia e padrões elitistas enraizados nos cursos de engenharia. Agora, como destaca Monforte, é preciso avançar para completar esse processo de transformação.

“Hoje temos, em grande proporção, profissionais que vivem nas comunidades, que vêm de famílias da classe trabalhadora. Quando discutimos as favelas, as moradias populares, a urbanização das periferias, estamos também falando da realidade de uma parcela significativa da própria categoria. E são esses profissionais os que mais precisam do movimento sindical, pois enfrentam as piores condições de trabalho, sofrem com o desemprego e não têm o sobrenome bonito, os contatos para prosperar no mercado. Já entraram na engenharia e agora precisam ser organizados politicamente. E essas pautas cumprem papel central nessa organização”, reforça o diretor.

Engenharia pública e criação de empregos

A engenharia foi protagonista na construção do Brasil: está presente no sistema elétrico unificado, na infraestrutura, na universalização da água e do saneamento e nas grandes obras nacionais. Mas falta o reconhecimento da engenharia como ferramenta de justiça social, capaz de reduzir desigualdades e melhorar diretamente a vida da população. A ação conjunta do Senge RJ, Crea RJ, IAB e UFRJ recoloca na agenda o papel da engenharia pública como instrumento de transformação. A proposta não só fortalece a função social da engenharia, como também pode gerar empregos qualificados para profissionais da área.

“Atender à população em situação de vulnerabilidade é, sim, uma função essencial da engenharia. Mas é também uma forma de gerar trabalho. Lutar por uma engenharia pública capaz de atender os que mais precisam é abrir um novo campo de atuação para as diferentes especializações da área. Isso ajudaria a recuperar os empregos públicos perdidos nas últimas décadas e a combater o desemprego, especialmente entre os jovens recém-formados, que enfrentam enormes dificuldades para conseguir o primeiro emprego”, afirma Monforte, que também milita no MTST.

Sindicatos como instrumento de transformação

Mais do que se aproximar da população, o engajamento da engenharia nas causas sociais é uma via para o fortalecimento do movimento sindical. O descrédito dos sindicatos — alimentado por campanhas da direita e agravado pela reforma trabalhista do governo Temer — levou a sindicalização ao menor patamar da história: em 2023, apenas 8,4% dos trabalhadores ocupados estavam sindicalizados no Brasil. O engajamento com as dores e lutas dos que mais precisam das engenharias pode virar esse jogo.

“O sindicalismo vive um desafio profundo, enquanto os movimentos sociais crescem. É preciso se reconectar com as pautas dos trabalhadores mais vulneráveis e oferecer respostas concretas às novas formas de relação de trabalho. Hoje temos a uberização, a pejotização, os engenheiros autônomos que trabalham em casa ou para várias empresas. Precisamos discutir essa realidade”, conclui Monforte.

Senge RJ | Foto: MTST

Ir para o conteúdo