Pelo menos 240 mil demissões, até o final de abril, foram provocadas diretamente pela pandemia de covid-19 no Brasil, segundo levantamento feito pelo Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese). Um total de 14 milhões de postos de trabalho podem ser fechados nos próximos meses, de acordo com projeção do Instituto de Economia da UFRJ, citada por Paulo Jager, supervisor técnico da regional do Dieese no Rio. Na avaliação dele, a crise deve quebrar empresas e acelerar a automação, um processo doloroso que poderá resgatar a importância do papel do Estado, pôr em xeque tabus fiscalistas e desmoralizar o projeto de Estado mínimo do ultraliberalismo.
“Abriu-se um flanco novo para se rediscutir o papel do Estado na nossa economia e repensar chavões, a falsa ideia de que o mercado se autorregula e é capaz de produzir níveis de bem-estar”, destaca Jager, que participou, no último dia 6, de apresentação no YouTube do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ), junto com o diretor de Administração e Finanças do sindicato, Felipe Araújo. A depender do mercado, na opinião do palestrante, “a economia irá para um buraco cada vez mais fundo.”
A crise deixa evidente, explica Jager, “que o setor privado toma decisões em direção ao vento”. Ou seja, a partir de uma perspectiva de piora da situação, a tendência racional de investidores e consumidores é postergar decisões de gasto e se proteger, produzindo a profecia ‘autorrealizável’ do desastre. “Só o Estado poderá nos tirar do buraco”, alerta.
Mesmo a redução da taxa Selic de 3,75% para 3%, na semana passada, pelo Conselho de Política Monetária (Copom) do Banco Central, não deve alterar o quadro de desmanche econômico do país. Basicamente, diz o supervisor do Dieese, porque os empresários dificilmente estariam dispostos a se endividar para investir, nem os bancos a emprestar com alto risco de inadimplência. “A política monetária, que já não tinha muito eficácia, praticamente a perdeu totalmente, particularmente a política de juros”, afirma. “A queda na taxa Selic reduz o custo do serviço da dívida, mas o custo menor do dinheiro não vai estimular a economia. O que poderia estimulá-la seria a expectativa por parte do investidor, se for privado, de que terá mercado consumidor no futuro. E tudo aponta no sentido contrário.” Não à toa, diz Jager, os recursos que têm sido transferidos pelo BC para o sistema financeiro estão ficando “empossados”, sem chegar na ponta, ao tomador de empréstimo – porque os bancos têm medo de emprestar.
“Se não houver gasto público, do Estado”, insiste o técnico do Dieese, “não teremos reaquecimento da economia”. É isso que mostra a experiência internacional e praticamente toda a literatura econômica que está sendo produzida sobre os impactos da pandemia.
O Estado precisa gastar e fazer a roda da economia girar, ainda que para isso tenha que emitir título da dívida ou moeda mesmo. E sem o menor risco de impacto inflacionário: o IBGE anunciou nesta sexta-feira (9) deflação em abril, com variação de 0,31%. “O Estado pode soberanamente emitir moeda e, dependendo da aceitação, ao longo do tempo estimular compra e venda, fazendo com que a economia se movimente”, acredita Jager. “É o que já está acontecendo em outros países, que vêm injetando trilhões de dólares e euros para tentar reanimar a economia, porque sabe-se que o setor privado não vai promover essa recuperação.”
Viabilizar a melhor maneira de combater a pandemia e preservar vidas já seria razão mais do que suficiente para ampliar o investimento e os gastos públicos, aumentando agora o nível de endividamento, se for necessário, para posteriormente diluir ao longo do tempo o custo com a sociedade, analisa o técnico do Dieese. Mas os motivos não são menores do ponto de vista econômico. “Se você permitir que a estrutura econômica seja comprometida, que as empresas fechem, que a gente perca a força de trabalho qualificada, que a economia se desorganize… o custo de sair dessa situação será muito maior”, avisa Jager. “É importante colocar dinheiro nas empresas, com controle social, contrapartidas, garantia de emprego, também para as pessoas do mercado informal, de modo que as coisas continuem funcionando.”
Tombo nos indicadores
Do contrário, as pessoas não poderão cumprir o distanciamento social, e o prazo para o fim da crise ficará cada vez maior. Estudo da Universidade de Singapura já projeta apenas para dezembro o fim do surto do novo coronavírus no Brasil. O governo, contudo, ainda não consegue dar resposta nem à emergência sanitária, de saúde, nem aos efeitos econômicos da pandemia, critica Felipe Araújo, do Senge RJ.
Enquanto acelera a taxa de óbitos diários no país por covid-19, os esforços federais têm se concentrado em pressionar o Judiciário, o Congresso, estados e municípios a flexibilizarem as medidas de distanciamento social, por um lado, e em cortar direitos trabalhistas, por exemplo, por meio das MPs que permitem redução de jornada e de salário. Mesmo o auxílio emergencial — de R$ 600,00 a R$ 1.200,00 mensais –, para os que declaradamente não têm renda, só saiu após intensa pressão do movimento sindical e dos partidos de oposição. Porque o governo, inicialmente, não queria dar nada, e depois, apenas R$ 200,00.
No mundo inteiro, o primeiro trimestre registrou resultados catastróficos: a China, após décadas de crescimento, teve queda no PIB de mais de 6% no primeiro trimestre; a União Europeia, quase 4%; nos EUA, cerca de 5% . Os números do período março a maio devem ser ainda piores para a economia norte-americana.
No Brasil, o PIB do primeiro trimestre ainda não saiu, mas a Pesquisa Industrial Mensal do IBGE apontou uma queda de 9,1% em março na produção da indústria, em relação a fevereiro. Considerando que a retração da atividade econômica avançou mais em abril, um tombo maior pode ser esperado.
A pandemia derrubou a demanda, mas Jager lembra que a economia brasileira já vinha mal, antes mesmo da chegada do novo coronavírus. No período de janeiro a março, a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) mostra que a taxa de desemprego formal não registrou nenhuma melhora, continuando próxima a 12%, com informalidade na casa dos 40%, mesmo patamar dos trabalhadores sem carteira assinada. Além disso, o supervisor técnico do Dieese ressalta que a renda média do emprego principal não variou nada, mantendo-se em pouco mais de R$ 2 mil. “Um indicador de que não havia recuperação econômica em curso nesse período.”
A chance para um novo modelo
Embora a estagnação econômica tenha se intensificado com o ultraliberalismo do ministro da Economia, Paulo Guedes, o desmonte vem desde 2016, na gestão Michel Temer, agravado pelo asfixiamento dos gastos públicos (não financeiros), a partir da Emenda Constitucional nº 95. “Esse teto para os gastos da União com as despesas primárias no nível de 2016, paulatinamente vai cobrando sua conta”, constata Jager. “Fomos reduzindo nossa capacidade de fiscalização, de regulação, de organização da informação, de planejamento, até chegar à dificuldade de atender na ponta as pessoas. O Ministério da Saúde teve sua verba orçamentária muito reduzida nestes anos, e, com a pandemia, o preço que estamos pagando é muito alto.”
A crise é “imensa, inédita e profunda”, talvez até mais aguda que a da grande depressão de 1929 nos EUA — país que atingiu em abril uma taxa de 14,7% de desemprego (contra 3,5% em fevereiro), avalia o técnico do Dieese. “Mas é também é a abertura de possibilidades para repensar, ressignificar, não só nossos valores pessoais, mas a maneira como encaramos as coisas, como achamos que deve funcionar o mundo, as relações do Brasil com outros países, etc.”
Ele observa, por exemplo, as gestões em curso junto ao BNDES para obtenção de recursos para a Embraer, que teve o contrato de aquisição desfeito pela Boeing. “É esse mesmo o papel do Estado, mas, se pode socorrer o interesse privado, por que não pode assumir outros papéis, de proteger a população, assegurar mínimos direitos que estão inscritos na Constituição, em saúde e educação, fazer com que o país tenha desenvolvimento científico e tecnológico, estatais fortes atuando em setores estratégicos, como energia elétrica, segurança alimentar, coisas que dão corpo à nossa soberania. A crise nos permite, pelo menos, discutir o papel do Estado.”
Nesse sentido, Felipe Araújo acredita que o país deveria debater as áreas mais relevantes para afirmar sua soberania. “Saneamento básico, geração e distribuição de energia, petróleo, saúde pública, segurança, educação… é preciso analisar a conjuntura e a realidade nacional para saber o que o Brasil precisa para se desenvolver autonomamente.”
Confira na íntegra a conversa com o supervisor técnico do Dieese no Rio, Paulo Jagger, e com o diretor de Adminstração e Finanças do Senge RJ, Felipe Araújo
Clique para conferir o levantamento dos impactos da covid-19 feito pelo Dieese