A fome ainda é um desafio para a humanidade. São mais de 800 milhões de pessoas, segundo estimativas da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), em insegurança alimentar. Não falta produção de alimentos para essas pessoas. Na verdade, já produzimos o suficiente para erradicar a fome no mundo três vezes. O problema persiste, no entanto, porque o modelo econômico hegemônico — construído sobre a desigualdade e capaz de descartar grandes carregamentos de alimentos se, por algum motivo, o lucro não for alcançado — vem se provando incapaz de resolvê-lo.
O próprio conceito do que é e de como deve ser tratada a fome, bem como as políticas e prioridades dos Estados no seu enfrentamento, mudou ao longo das últimas décadas. Para falar sobre o tema, o convidado do Soberania em Debate de 16 de outubro foi o economista e liderança fundadora do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), João Pedro Stédile.
A escolha da data da entrevista não foi aleatória: 16/10 é o Dia Mundial da Alimentação. A data, criada pela FAO, se soma a outras que fazem do mês de outubro um período bastante importante para o tema. Stédile abriu sua participação lembrando o 3 de outubro, Dia da Agroecologia, e o Dia dos Povos Originários, em 12/10. “O primeiro foi uma homenagem do Congresso à querida Ana Maria Primavese, grande cientista de solos, que deixou uma obra teórica e prática que é base de sustentação científica de todos os métodos de agroecologia; e a segunda, uma data comemorada em todas as Américas, do Canadá à Patagônia, que celebra a nossa liberdade da colonização europeia”, destaca Stédile.
A evolução do entendimento da fome
O dirigente, um dos principais articuladores do movimento que é o maior produtor de arroz orgânico da América Latina, traçou o histórico do entendimento da fome, reconceituada, repensada e reconstruída à medida que avançavam os estudos e reflexões sobre o tema. Durante séculos, a fome era entendida como um resultado direto da diminuição da produção e oferta de alimentos causada por obstáculos naturais e contextos pontuais, como pandemias e guerras. Foi nos anos 1950 que o conceito mudou. “Um pernambucano muito sabido, que tinha uma formação acadêmica bem eclética — era geógrafo, médico, sociólogo e liderança da militância do PTB —, nosso querido Josué de Castro, levantou uma tese revolucionária”.
Para Josué, a fome não era consequência da natureza e de seus fenômenos, mas uma consequência das relações sociais de produção introduzidas pelo capitalismo na produção agrícola de alimentos. A teoria de Castro se espalhou e virou consenso científico rapidamente, com livros traduzidos para diferentes línguas. Stédile conta que, em uma brigada do MST na China, encontraram o livro Geografia da Fome em um sebo, publicado em mandarim.
“Também na década de 50 aconteceu a revolução chinesa, e o pensamento de Josué criou raízes por lá. O povo passava fome, por dois séculos, em função do imperialismo mercantil colonial de britânicos, franceses e japoneses. A revolução libertou o povo chinês com a reforma agrária. Entregaram a terra para as famílias de camponeses de forma igualitária, que atendeu uma média de 1 hectare por família. A revolução vermelha tirou quase 1 bilhão de pessoas da fome, algo que nenhum país capitalista havia conseguido; ao contrário, era ele, nas suas várias formas de dominação — como o colonialismo e o imperialismo —, que havia causado a fome no Sul global”, conta Stédile.
A última alteração no conceito foi uma resposta direta dos Estados Unidos à revolução vermelha: a chamada Revolução Verde, fortemente impulsionada pela mídia, pela imprensa e pelo cinema. A proposta norte-americana era a de uma agricultura baseada no uso de agroquímicos e agrotóxicos, que prometia ampliar muito a produção de alimentos e eliminar a fome. O engenheiro agrônomo que cunhou o conceito, Norman Borlaug, ganhou o Prêmio Nobel da Paz. Passados 50 anos, temos o resultado da estratégia estadunidense: na década de 70, quando o conceito tomou conta do mundo, 60 milhões de pessoas passavam fome. Hoje, após décadas de Revolução Verde, o número saltou para 800 milhões de pessoas. O mercado dos agroquímicos, no entanto, segue prosperando.

Na década de 90, a FAO reuniu os representantes dos países e evoluiu o conceito, introduzindo a necessidade da defesa da segurança alimentar. “Todos os governos se comprometeram a implementar políticas públicas que buscavam o combate à fome. Os Estados assumiram para si a responsabilidade de desenvolver e implementar políticas para entregar comida para a população, de evitar que a sua população passasse fome”, lembra Stédile. Daquele movimento, nasceram as políticas assistencialistas e o Programa Mundial de Alimentos, um estoque mundial a ser usado em emergências. Mais uma vez, o conceito se mostrou incapaz de espelhar a realidade e orientar ações.
Na mesma década de 1990, a Via Campesina, que reúne o maior número de movimentos camponeses do mundo, reunida em Roma, instituiu, a partir do acúmulo teórico e prático e da produção de seus intelectuais orgânicos, o conceito de soberania alimentar. “É a defesa de que cada povo — todos os povos — tem o direito e o dever de produzir os alimentos necessários para a sua população. Caberia aos governos implementar políticas que contribuíssem para a produção dos alimentos, de acordo com as necessidades de cada território. Nós, da Via Campesina, passamos a defender, então, que as populações têm que aprender a pescar. Isso é soberania alimentar, diferente da segurança alimentar, em que é o governo que entrega o peixe”, explica Stédile.
Modelos agrícolas brasileiros
No segundo bloco do programa, Stédile detalhou os três modelos agrícolas que se enfrentam no Brasil: dois capitalistas e um dos trabalhadores. O primeiro modelo é o Latifúndio Predador, que se caracteriza pela apropriação privada de terras, água, biodiversidade e florestas para acumular capital, sem produzir alimentos e destruindo a natureza. O segundo modelo é o do Agronegócio, que utiliza modernas técnicas e é controlado por grandes empresas transnacionais que fornecem insumos e compram a produção. Esse modelo não produz alimentos, mas sim commodities agrícolas para o mercado internacional, como soja, milho, cana-de-açúcar, algodão e pecuária bovina. Stédile enfatizou que o agronegócio, apesar de “cantado em verso e prosa”, utiliza intensivamente agrotóxicos, desequilibra o meio ambiente e provoca mudanças climáticas, citando o “absurdo” dos 280 milhões de cabeças de gado no país, muito além do que o Brasilprecisa para alimentar seu povo.
Em contrapartida, a Agricultura Familiar é o terceiro modelo, no qual os agricultores produzem na forma familiar e priorizam a produção de alimentos para a sua família e o excedente para o mercado nacional e local. A Agricultura Familiar é, para Stédile, o principal modelo capaz de gerar tanto segurança alimentar (para o governo comprar e fazer estoques) quanto soberania alimentar (por meio de políticas públicas que levem os agricultores a produzir todos os alimentos de que o povo brasileiro precisa). Para o economista, a prioridade da agricultura moderna não é o uso de máquinas e agrotóxicos, mas sim produzir alimentos saudáveis, função que só a agricultura familiar pode cumprir.
Políticas Públicas para a Soberania Alimentar
O terceiro e último bloco foi dedicado às políticas governamentais que buscam a segurança e a soberania alimentar no Brasil, um tema constante nas políticas do governo Lula, que conseguiu tirar o país do Mapa da Fome das Nações Unidas, para onde o Brasil havia retornado após o golpe que afastou a presidenta Dilma Rousseff do governo em 2016.
Stédile listou exemplos de políticas de Segurança Alimentar, como o Bolsa Família, a distribuição de cesta básica e a necessidade de a CONAB fazer estoque de alimentos básicos, como arroz e feijão, citando a recente crise do arroz no Rio Grande do Sul como exemplo de como a falta de estoque pode levar à necessidade de importação.

No campo da Soberania Alimentar, o economista destacou três políticas “elogiáveis”. A primeira é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), um instrumento em que o governo faz contratos com agricultores familiares para comprar toda a sua produção. Stédile lembrou que, nos “anos áureos” do governo Lula 2, a CONAB chegava a utilizar R$ 4 bilhões e comprava 367 tipos diferentes de alimentos, fomentando a produção e garantindo a compra à vista, o que chegava a substituir o crédito rural. A segunda é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), cuja lei determina que, no mínimo, 45% dos alimentos da merenda escolar sejam comprados da agricultura familiar e no município, estimulando a produção local e contribuindo para uma alimentação saudável das crianças.
Por fim, a Reforma Agrária é, segundo Stédile, a política mais estruturante para a soberania alimentar no médio prazo. A luta do MST para repartir o latifúndio visa transformar áreas predadoras ou improdutivas em locais de produção de alimentos, incorporando os trabalhadores rurais sem terra ao contingente de agricultores que produzem para o povo. Stédile concluiu a participação reforçando que a reforma agrária também é essencial para refazer áreas da pecuária bovina degradadas e áreas do agronegócio degradadas pelo uso intensivo de agrotóxicos.
Ao final do programa, Stédile não deu a conversa por terminada. Ao contrário, convidou a todos e todas a alimentar o debate: “Espero que essas reflexões sejam de alguma forma úteis para que vocês sigam debatendo o tema, pesquisando, lendo, já que é um tema tão complexo que não se resolve numa palestra ou em uma live como essa”.
Esse debate permanente ganharia, dias depois da entrevista, um subsídio importante, com o lançamento do Atlas dos Conflitos do Campo Brasileiro. Uma iniciativa da Comissão Pastoral da Terra e do Armazém do Campo, a publicação registra conflitos e lutas de 1985 a 2023, reforçando a importância do debate para a sobrevivência da humanidade. Clique aqui para acessar.
O programa Soberania em Debate, projeto do SOS Brasil Soberano, do Sindicato dos Engenheiros no Rio de Janeiro (Senge RJ), é transmitido ao vivo pelo YouTube, todas as quintas-feiras, às 16h. A apresentação é da jornalista Beth Costa, com assessorias técnica e de imprensa de Felipe Varanda e Lidia Pena, respectivamente. Design e mídias sociais são de Ana Terra e redação de Rodrigo Mariano. As entrevistas também podem ser assistidas pela TVT, Canal do Conde, e são transmitidas pelas rádios comunitárias da Associação Brasileira de Rádios Comunitárias – Abraço Brasil.
Foto em destaque: Valter Campanato/Agência Brasil