O governo tem arcado com reembolsos de salários astronômicos de servidores do Ministério de Minas e Energia (MME), muito acima do teto constitucional de R$ 28 mil. Documentos obtidos com exclusividade pelo Correio mostram que os gastos incluem até valores de mais de R$ 98 mil referentes a participação nos lucros. Esta casta de marajás é formada por funcionários requisitados de estatais do setor elétrico. Eles não se submetem ao limite salarial do funcionalismo, e acumulam também DAS e jetons de conselhos, como é o caso do secretário executivo da pasta, Márcio Pereira Zimmermann.
Usando uma brecha legal, esses servidores fazem opção por receber a remuneração do emprego de origem. A fatura cobrada pelas empresas é enviada ao ministério, e os reembolsos são feitos. Além dos salários, são pagas as gratificações, as contribuições ao Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) e ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), vale-alimentação e até participações nos lucros. O Tribunal de Contas da União (TCU) passou a investigar essa anomalia após o Ministério Público entrar com uma representação e questionar as devoluções de recursos que a pasta faz às estatais. O processo TC 044.735/2012-0 é relatado pelo ministro Raimundo Carreiro, que disse estar impedido de se manifestar sob o caso.
A reportagem teve acesso a cinco extratos de reembolso, de cinco diferentes empresas do setor elétrico, feitas entre setembro de 2012 e agosto de 2013. No total, foram cobrados do ministério R$ 1,78 milhão referentes aos gastos com 34 empregados cedidos à pasta. Com esses recursos, seria possível contratar 63 servidores recebendo o teto constitucional. Se essa remuneração fosse reduzida à metade do salário dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), ou a pouco mais de R$ 14 mil, 127 pessoas poderiam ser admitidas na administração pública federal, após passarem por concurso público ou nomeados para cargos de confiança.
Somente um dos reembolsos, que correspondia a vencimentos de um servidor cedido por uma estatal do setor elétrico, foi de R$ 162.833,42.Desse total, mais de R$ 98 mil se referem a participação nos lucros. Em setembro de 2012, o ministério devolveu mais de R$ 65 mil, referentes ao salário, gratificações e contribuições sociais de Márcio Zimmermann. Além disso, ele recebe do ministério mais de R$ 7 mil de gratificação e R$ 18 mil de jetons dos conselhos da BR Distrituidora e da Petrobras — o dinheiro recebido da petrolífera e da empresa de combustíveis é abatido do teto constitucional.
Legalidade
Apesar da aberração, os reembolsos são legais. Os ministérios de Minas e Energia, do Planejamento e a Controladoria-Geral da União (CGU) explicaram que o decreto presidencial nº 4.050, de 12 de dezembro de 2001, referenda e disciplina a devolução dos recursos às estatais. Esse instrumento legal regulamentou a Lei nº 8.112, que instituiu o regime jurídico dos servidores públicos da União. O Ministério do Planejamento detalhou que o teto constitucional se aplica tão somente à remuneração de servidores públicos e também de empregados públicos de empresas dependentes de recursos do Tesouro.
Porém, essa limitação não existe no caso de ressarcimento às estatais pela cessão de empregados. O reembolso em questão alcança todas as despesas de pessoal associadas como: FGTS, INSS, parcela patronal para previdência privada (quando for o caso), 13º salário, adicional de 1/3 sobre as férias, entre outras. Conforme o Planejamento, dados do Sistema Integrado de Administração de Recursos Humanos (Siape) indicam que 2,8 mil pessoas de estatais estão cedidas para órgãos e entidades do Executivo federal. Entretanto, a pasta não soube informar quanto é gasto mensalmente para custear somente essa folha de pagamento. No caso dos reembolsos, cada ministério usa recursos próprios para cobrir essa despesa específica.
O MME detalhou que o pagamento de servidores do quadro leva em conta o teto constitucional estabelecido. Já os empregados públicos cedidos de estatais do setor elétrico, consideradas pela pasta empresas não dependentes, não são pagos pelo ministério. A CGU comentou que, no momento, analisa a questão para verificar se há algum problema.
Autor da representação que deu origem ao processo que tramita no TCU, o subprocurador geral perante a Corte, Lucas Furtado, apresentou no documento reembolsos de salários que variam de R$ 30 mil a R$ 57 mil. Ele explicou que trabalhadores de estatais que não recebem recursos do Tesouro Nacional deixam de se submeter ao teto do funcionalismo. Entretanto, Furtado avalia que, a partir do momento em que essa pessoa é cedida para ocupar um cargo no Executivo, a remuneração deve ser atrelada ao limite imposto pela Constituição. “O erro é requisitar pessoas com salários acima do que diz a lei”, destacou.
Na opinião do professor de direito administrativo da Universidade de Brasília (UnB) Mamede Said Maia Filho, essa situação é anômala na medida em que gera um desnível dentro dos órgãos públicos. Para ele, esses casos criam desconforto nos ministérios. “O bom senso indica que, uma vez estando na administração direta, o agente público cedido deveria se submeter às normas constitucionais que regem a situação dos servidores, entre as quais o teto do funcionalismo”, completou.
Distorções
O professor de Direito Administrativo do Instituto de Direito Público (IDP) Sidraque David Monteiro Anacleto detalhou que esse impasse existe uma vez que não há legislação específica que discipline o caso. Conforme ele, seria necessário criar uma lei para normatizar as relações entre o governo federal e as estatais que não se sujeitam ao teto constitucional. Anacleto disse que o Congresso Nacional precisa se debruçar sobre o tema para criar uma lei e acabar com essas distorções.