Teletrabalho demanda nova pauta de direitos, defendem dirigentes

Na França, o direito à desconexão é lei desde 2017. Na Alemanha e em Portugal, foi conquistado nos acordos coletivos firmados entre empresas e empregados.

Ao mesmo tempo em que cresce a adesão ao teletrabalho, ou home office, devido às medidas de distanciamento social e ao medo do contágio da covid-19, novos pactos se tornam  necessários para dar limites à jornada de trabalho, muitas vezes ampliada nestes tempos de pandemia. O tema foi objeto de duas conversas no canal do YouTube do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge RJ) nos dias 15 e 22 deste mês, que trataram, respectivamente, do teletrabalho e da sobrecarga imposta às mulheres pelo acúmulo de funções. Para os dirigentes e especialistas ouvidos, o ideal para os casos de trabalho remoto é que empregador e empregado façam um acordo coletivo, mediado pelo sindicato, que também deve ser procurado — mesmo que de forma sigilosa — para denúncia de abusos na jornada de trabalho.

“É importante lembrar que a Reforma Trabalhista diz que a adoção do teletrabalho requer um acordo expresso, escrito, com as condições de trabalho”, diz a advogada Daniele Gabrich, assessora jurídica da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros e do Senge RJ. Mas ela observa que o  acordo individual pode ser desfavorável ao trabalhador,  devido à assimetria da relação entre as partes, razão por que recomenda  o acordo coletivo. Também chama a  atenção para a obrigação de a empresa  estabelecer repouso semanal remunerado. Mesmo sem controle do ponto, o trabalhador tem direito a repouso, pelo menos uma vez por semana e preferencialmente aos domingos.

A difusão do  teletrabalho e das ferramentas de TI na produção também geraram uma nova demanda nas relações de trabalho. O chamado direito à desconexão, que já foi formalizado em alguns acordos internacionais, e até em uma lei, na França, afirma a engenheira Simone Baía, diretora do Coletivo de Mulheres da Fisenge. Reportagem da jornalista Camila Marins, na edição do trimestre junho/julho/agosto da revista Fisenge em Movimento, produzida pela entidade, conta que, em maio deste ano, este direito passou a integrar a Convenção Coletiva do Banco de Portugal, proibindo ao empregador “exigir que o trabalhador se mantenha conectado durante os seus períodos de descanso”. No mesmo mês, o Partido Socialista do país apresentou uma proposta de Carta de Direitos Fundamentais na Era Digital”. O 16º artigo da carta descreve o “direito de desligar dispositivos digitais “.

A França saiu na frente nesse debate, com uma Lei de Desconexão, que começou a valer a partir de 2017. Aplicável a empresas com 50 ou mais empregados, ampara os trabalhadores a não responderem mensagens ou emails fora do expediente regular.  Já na Alemanha, os sindicatos, principalmente por meio do IG Metall, conquistaram cláusulas sobre o tema em acordo coletivo. Na Volkswagen, por exemplo, informa a Fisenge em Movimento, “há um bloqueio a determinados funcionários que proíbe acesso a email das 18h15 às 7h”.

No Brasil, ainda não há qualquer iniciativa parlamentar para atualizar a legislação no que se refere à jornada de trabalho vinculada aos dispositivos digitais. “Devemos começar a construir uma ação nesse sentido”, diz Felipe Araújo, diretor de Administração e Finanças do Senge RJ. “E também insistir no tema nas negociações coletivas.”

Transferência de custos 
Outros aspectos do home office envolvem a responsabilização do empregador sobre custos corporativos e acidentes de trabalho, mesmo que no ambiente de casa, e o estabelecimento de diretrizes que preservem as mulheres da sobreposição de jornada e de tarefas. Segundo Maria Virgínia Brandão (à esq.,na imagem abaixo), diretora do Senge RJ, as mulheres representam de 10% a 15% dos quadros da engenharia e têm sido as mais afetadas pela sobrecarga de trabalho, tanto no teletrabalho quanto nas atividades essenciais, em que elas precisam continuar indo a campo.

Este quadro desigual foi o que motivou a Fisenge a realizar uma pesquisa sobre o tema, atualmente em curso (CLIQUE AQUI PARA PARTICIPAR). A entidade também está produzindo uma cartilha virtual que detalha direitos de engenheiros e engenheiras (veja o link ao fim do texto), e construindo um protocolo específico para  defesa dos direitos das mulheres durante a crise sanitária.

As medidas do protocolo incluem  licença remunerada para vítimas de violência doméstica, garantia de poder trabalhar remotamente para mulheres com filhos menores de 14 anos (que não podem ficar sozinhos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente), obrigação de o empregador pagar teste de Covid-19 para as trabalhadoras que exercem atividades essenciais e presenciais, entre outras.

“Com a pandemia, a desigualdade, no que se refere ao trabalho doméstico e aos cuidados como um todo, ficou muito mais visível, como já mostram algumas pesquisas”, diz Simone (ao centro, na imagem), que também faz parte do Comitê Gestor do Programa Mulher do Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea). Ela ressalta que a carga derivada da ausência das trabalhadoras domésticas, da falta da rede de apoio de amigos ou parentes, de creches e escolas funcionando, não foi absorvida pelos casais, mas basicamente pelas mulheres. “Poucos homens entendem que o cuidado com a casa e com os filhos é deles também.”

Além da sobrecarga de tarefas, o teletrabalho implica mais despesas para os trabalhadores. “Home office não é privilégio”, alerta Simone. “Em alguns casos, acaba sendo mais um passo na precarização do trabalho. E trouxe custos novos: aumento na conta de energia, gasto com equipamento, conexão mais rápida”. No caso das mulheres, ela lembra que ainda há toda um planejamento interno para permitir, especialmente àquelas que são mães, participarem  de reuniões online dentro de casa. Trabalhar em casa significa dispor de um espaço reservado, serviço de banda de larga de alto desempenho, telefone, computador atualizado, móveis e iluminação adequados à ergonomia das atividades.

Nesse sentido, Fabyola Resende (à dir., na imagem acima), gerente de Relacionamentos Institucionais do Confea, aponta a  “falta de sensibilidade” de gestores. Em home office, na cidade de Belo Horizonte, ela conta que chegou a receber convites para participar de videoconferência às 7h30 da manhã. Reuniões que, em geral, não têm hora para acabar, critica, afirmando que sua jornada praticamente duplicou. Levando em conta os relatos de outras mulheres na equipe, a engenheira avalia que o tempo gasto com a casa e cuidados com a família aumentou de 21 para mais de 50  horas por semana.

“A pandemia forçou uma digitalização que viria com o tempo”, diz Fabyola, destacando que mesmo o Conselho de Tecnologia do Confea, que até então fazia pouco uso dos recursos de TI, “se viu forçado a adequar a plenária, agora 100% virtual”.  A gestora conta que o seu dia começa às 6h da manhã, sem hora para terminar.  “É importantíssimo que os sindicatos discutam isso, porque são eles que vão ajudar a estabelecer limites e lutar por nossos direitos”, ressalta Simone.

Segundo Maria Virgínia Brandão, já há registro de muitas reclamações de abusos de superiores, “que mandam mensagem na sexta de noite, pedindo relatório para segunda, a maioria sem  controle das horas trabalhadas nem pagamento de horas extra”.

Legislação e desconexão
Agamenon Oliveira (à esq. na imagem abaixo), diretor do Senge RJ, professor da UFRJ e pesquisador do Cepel, observa que a Reforma Trabalhista já tinha criado condições muito ruins, agora pioradas com a pandemia: “As relações de trabalho ficam precarizadas ao extremo. Se você está sempre disponível, não tem jornada de trabalho”, afirma. “O controle sobre o horário de trabalho é uma luta histórica”, destaca Daniele. “São condições mínimas, que já estão lá na convenção nº1 da OIT, de 1919. Os meios de luta vão mudando, as formas de trabalhar, de prestar serviços, a organização do capitalismo vai sendo alterada, e a gente continua com demandas muito básicas.”

Ela relaciona  muitas questões não respondidas sobre o teletrabalho. “Será que o computador terá o mesmo nível de segurança das informações que teria o computador da empresa para dados bancários, médicos, etc? Como o auditor vai fiscalizar o ambiente de trabalho, se a Constituição assegura a inviolabilidade da residência?” Por isso, a advogada reforça a importância das negociações coletivas, capazes de conferir mais segurança jurídica às partes, garantindo que riscos da atividade econômica não sejam transferidos para o empregado — os riscos relacionados à segurança da informação, mas principalmente à saúde física, emocional, psíquica, ao conforto ergonômico, entre outros.

Para apoiar ações judiciais de cobrança de horas extras, Daniele (à dir.) recomenda aos trabalhadores que guardem  registros das ligações feitas pela chefia de madrugada ou fora do expediente, mensagens no WhatsApp, etc. “O gestor fica ansioso, tira o problema da cabeça e passa para a cabeça do outro. Essa pressão pode ser feita por Zoom, ligação, WhatsApp, telefone. Se não for observado um limite, o trabalhador tem que juntar as provas, num arquivo, produzindo provas dessa demanda abusiva.”

Para pedir ajuda no ajuizamento de ações trabalhistas, deve-se procurar o sindicato, que conta com assessoria jurídica especializada, ou o Ministério Público, pelo site. Em ambos os casos, é assegurado o sigilo das informações. Felipe Araújo (à dir., na imagem ao lado), diretor do Senge RJ, destaca, nesse sentido, a relevância dos sindicatos. “Uma das funções essenciais do representante de base é  proteger o trabalhador, ouvi-lo, com garantia de confidencialidade.” “Precisamos ter coragem de dizer que não estamos vivendo o normal”, diz Simone Baía, da Fisenge. “Busquem apoio.”

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