Fonte: Brasil de Fato
“Se a moda pega, e se deixarmos, o governo [não eleito de Michel] Temer é capaz de fazer com que a legislação social do Trabalho regrida a 1888, ou seja, à época de escravidão”, afirmou o sociólogo Ricardo Antunes, professor da pós-graduação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Uma das grandes referências brasileiras da Sociologia do Trabalho, em entrevista concedida ao Brasil de Fato, ele discorre sobre as ofensivas neoliberais na América Latina em uma nova etapa da crise do capital mundial.
Para o sociólogo, a destruição da Consolidação das Leis do Trabalhado (CLT) para modernizá-la é uma falsidade. “Em todos esses países, as grandes transnacionais e grandes corporações pressionam os governos para que eles tomem medidas no sentido de destruir a legislação social protetora do trabalho”, afirma. No Brasil, o segmento seria representado pela “grotesca da Fiesp” [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo], que esteve na liderança do golpe parlamentar.
O professor também é otimista quanto ao futuro. Segundo ele, como resposta à retirada de direitos, haverá uma miríade social de lutas, de greves e manifestações. “A América Latina e a Ásia são dois laboratórios muito importantes das lutas sociais de inspiração socialista. (…) Nesses momentos de crise é quando os grandes desafios são postos e as alternativas de novos tipos aparecem”, analisa.
Confira a entrevista completa:
A reforma trabalhista que é defendida pelo governo de Michel Temer tem o intuito de “modernizar” uma legislação considerada “rígida” e antiga da década 1940. Ela é necessária no Brasil hoje? Por quê?
O primeiro ponto é que dizer que a proposta de reforma vem para modernizar é pura ideologia, uma pura falácia. Ela é, na verdade, uma contrarreforma. O seu sentido essencial não tem nenhum sentido de modernizar, mas simplesmente de ampliar as formas de superexploração do trabalho no Brasil em todos os níveis e em todas as atividades. Governo nenhum, ainda mais um governo como esse que é resultado de um golpe parlamentar e não conta com nenhuma legitimidade, poderia dizer que vai fazer uma reforma trabalhista para destruir as condições de trabalho e retomar níveis de superexploração do trabalho e, até mesmo, de escravidão moderna do trabalho. Então eles dizem que vão modernizar as relações capitalistas.
A CLT, que diz respeito à legislação social trabalhista, foi uma conquista da classe trabalhadora, no concerne a legislação social trabalhista. Essa legislação consubstancia as lutas da década de 1910, 1920 e, especialmente, 1930. Na minha dissertação de mestrado estudei com detalhe o movimento operário brasileiro nos anos 1930 e todas as reivindicações que a classe trabalhadora fazia nas greves. De certo modo, Getúlio [Vargas] as incorpora na CLT e diz que é um presente dele para os pobres, uma dádiva, um estado benfeitor – o que é uma falsidade. Em verdade, ele atende a uma reivindicação das classes trabalhadoras. Por outro lado, a CLT que diz respeito à legislação sindical, é predominantemente negativa e coibidora da autonomia e da liberdade sindicais, porque atrelou o sindicato ao Estado.
Então dizer que destruir a CLT é para modernizá-la é uma falsidade. Se a moda pega, e se deixarmos – fazendo uma provocação – o governo Temer é capaz de fazer com que a legislação social do Trabalho regrida a 1888, ou seja à época de escravidão. Ou seja, é inaceitável.
Como essa mudança proposta aqui está relacionada com a posição do Brasil na nova divisão internacional do trabalho?
Está profundamente ligada. Desde pelo menos os anos 1970, houve uma redivisão, onde os países capitalistas avançados detêm as tecnologias avançadas, a “produção limpa”. Toda a “produção suja, destrutiva”, fundada em níveis intensificados de superexploração do trabalho, estão desenhadas para o sul do mundo – que vai do continente latino-americano ao continente asiático, passando pela África. As economias de ponta, a concepção tecnocientífica e os laboratórios estão nos países capitalistas do norte. A produção destrutiva, a superexploração do trabalho, a degradação ambiental, a devastação das condições da população trabalhadora estão mais intensamente desenvolvidas e aplicadas no Sul.
Isto não quer dizer que o norte do mundo também não tenha exploração do trabalho e até mesmo superexploração. Mas no sul do mundo é que essa exploração é mais destrutiva. A China tem hoje mais de 1 bilhão e 500 milhões que compreendem sua população e a Índia tem mais de 1 bilhão. É um exército monumental de reserva de trabalho. Se você imaginar países como o Brasil, África do Sul, bolsões do Leste Europeu, onde existem também uma classe trabalhadora relativamente mais qualificada e ávida por trabalho, a exploração do trabalho é ilimitada.
Os trabalhadores de países do norte, como Espanha, e mais recentemente França, também sofrem ameaças aos seus direitos trabalhistas. Como podemos entender este movimento do capital?
O sistema global do capital hoje, ou o capitalismo mundializado, se quisermos assim dizer, se fundamenta na hegemonia do capital financeiro. E o capital financeiro impõe uma exploração do trabalho em todos os espaços e em todas as esferas do mundo. As tendências de precarização do trabalho estão em toda a Europa.
Em todos esses países, as grandes transnacionais e grandes corporações pressionam os governos para que eles tomem medidas no sentido de destruir a legislação social protetora do trabalho. Na Itália, na Espanha, na Grécia, na Alemanha, na Inglaterra, nos Estados Unidos, em Portugal. Não há um país que fuja desse cenário.
A terceirização é o sonho dos capitais. Se os capitais conseguem a terceirização total, como querem fazer no Brasil, em todos os ramos de atividade econômica, será possível terceirizar. Isso é o melhor do mundo para o capital, porque ele diminui seus custos, aumenta o nível de exploração do trabalho – nas áreas onde já existe a terceirização os trabalhadores e trabalhadoras recebem menos – aumenta-se a divisão da classe trabalhadora. Eles querem dividir a classe trabalhadora e terceirizar ilimitadamente, quarteirizar fatiando e fragmentando ainda mais a classe trabalhadora.
Há uma impulsão das 400 ou 500 transnacionais que dominam o mundo para a criação de um mercado global de trabalho absolutamente flexível e desregulamentado. No Reino Unido, os zero-hour contracts, os chamados “contratos de zero horas”, atingem hoje mais de um milhão de trabalhadores e trabalhadoras, especialmente no setor de serviços – médicos, enfermeiros, cuidadores, trabalhadores de transporte privado como o Uber e tantos outros. [Esses contratos] são formas de assalariamento disfarçado. Quando um trabalhador assina um contrato de zero hora na Inglaterra, ele não tem hora pré-determinada a cumprir. Mas, se ele recebe um chamado, ele é obrigado a atender e fazer. Ele ficou dez dias esperando, só recebeu um chamado e ele não recebe pelos outros dias que ficou esperando, embora tenha ficado em disponibilidade para o trabalho. É um emprego fundado numa relação completamente desprovida de regulamentação e que leva à escravidão moderna da Era digital.
E essa informalização e precarização é mais intensa em países onde a resistência sindical é menor. E ela é menos intensa, a flexibilidade total, onde há maior resistência sindical. Você sabe que nos últimos dois meses houve uma luta muito importante na França para tentar impedir uma medida destrutiva tomada pelo – pasme você – “governo socialista” de Hollande, que na verdade é um governo social-democrata de matriz neoliberal completamente perverso em relação à classe trabalhadora.
Por que na França temos visto essa escalada da resistência e aqui não temos algo parecido? Tem alguma relação com o enfraquecimento dos sindicatos?
Claro que a França tem uma tradição sindical mais consolidada que a nossa. Mesmo que os sindicatos lá não sejam todos combativos, classistas e de esquerda, a medida que os direitos foram consolidados desde a Revolução Francesa, depois as Revoluções de 1848, a Comuna da Paris em 1871, as lutas do século XX, tudo isso fez com que houvesse uma regulamentação sólida do trabalho. E os sindicatos não aceitam sua destruição sem luta.
No caso brasileiro, não é que não luta. Mas os sindicatos sofreram muito neste período. Vou dar um exemplo puramente quantitativo do ABC Paulista. Na época áurea das greves de 1978-1980, existiam mais de 200 mil operários metalúrgicos. Seis ou sete empresas automobilísticas tinham 60% da mão de obra no ABC Paulista. Hoje, com a desindustrialização e com as mudanças das plantas de São Paulo para o Nordeste e do Nordeste para áreas onde a exploração do trabalho é ainda mais intensa, como a China, os sindicatos perderam muita base.
E nasceram muitas categorias novas que não têm propriamente experiência ou tradição sindical. O telemarketing no Brasil, que hoje tem mais de um milhão de pessoas, é muito amplo e há burla enorme porque a terceirização é ilimitada. A desregulamentação é completa, como também ocorre na indústria do têxtil em São Paulo onde um contigente de trabalhadores latino-americanos e haitianos entram no processo de trabalho em condições marcadas pela informalidade, pela terceirização, pela ausência de direitos, pela precarização ilimitada. Em alguns casos chega a configurar trabalho escravo para grandes transnacionais. É evidente que essas novas categorias ou esses novos setores da classe trabalhadora não conseguem criar um sindicato de uma hora para outra.
E, no Brasil, há ainda um problema mais complicado porque nós temos milhares de sindicatos do lado patronal e mais ainda outros milhares que dizem representar a classe trabalhadora, mas muito deles são sindicatos pelegos, puramente dotados de uma condição patronal para se apropriar de um imposto sindical e de outros recursos que a legislação sindical brasileira tristemente ainda preserva. O caso mais espetacularmente trágico disso é o imposto sindical, criado pela Ditadura Varguista no final da década de 1930 e permanece até hoje sendo que muitos sindicatos e federações recebem o imposto sindical praticamente sem organizar ou, de fato, desorganizando a classe trabalhadora.
Mas eu não tenho dúvidas que há exemplos de luta muito importantes. Há muitos sindicatos que são classistas, combativos, há sindicatos que lutam por seus direitos. Hoje mesmo estamos tendo uma greve nacional dos bancários, com vários sindicatos em várias cidades e em várias regiões do país não aceitando que os bancos lucrem a exorbitância que lucram, mesmo em períodos de crise, e querem sub-remunerar as trabalhadoras e os trabalhadores que atuam no setor. E há luta, há resistência. Como a greve de professores, ano passado tivemos uma miríade de greves de professores.
E eu também não tenho que quando a população trabalhadora compreender, e ela tem avançado muito, o sentido destrutivo da lei de terceirização total do Brasil e o caráter nefasto do princípio do negociado se impondo sobre o legislado – o que significa dizer que um sindicato, sobre pressão do desemprego, pode aceitar a redução da jornada de trabalho com a redução dos salários, depois o mercado “volta ao normal” você volta a ter a jornada de trabalho normal sem aumento de salário. O negociado permite que você faça com que a legislação social existente retroceda um patamar que é inaceitável. Por isso, esse princípio não pode ser aceito pelos sindicalistas, porque é a forma de quebrar aquele patamar mínimo que a classe trabalhadora deve ter preservado que hoje é dado pela CLT.
Você defende em seu trabalho que há uma crise estrutural que muda o modelo de acumulação desde a crise do petróleo (1973). Na sua avaliação, as ofensivas conservadoras que a América Latina tem sofrido nesta segunda década do século XXI são uma continuação desta crise estrutural ou se trata de uma nova mudança no modelo de acumulação do capital?
O período dos anos 1968-1973 marcou uma reorganização fundamental do capitalismo. Pouco a pouco foi-se abandonando o capitalismo de tipo industrial, fabril, taylorista e fordista para um capitalismo flexível – industrial e fabril -, mas também levando à industrialização do setor de serviços, à expansão privatista dos serviços que no passado eram públicos, sob uma modalidade que foi propiciada pelas mutações tecnológicas.
No caso brasileiro, isso começa não nos anos 1970, como na Europa, mas essas mudanças começam a vir intensamente a partir da eleição do [Fernando] Collor em 1990 e depois com Fernando Henrique Cardoso [FHC]. Há um triplo destrutivo que marcou esse período que eu chamaria de uma contrarrevolução burguesa no Brasil, para lembrar do Florestan Fernandes e do Otavio Ianni. Este tripé é constituído pelo neoliberalismo e a privatização de tudo que interessa aos capitais, a ressituação produtiva com base em uma indústria mais flexível. O terceiro pé, que é decisivo, é que tudo aconteceu sob hegemonia do capital financeiro.
Isto entrou com força no Brasil nos anos 1990 e, de certo modo, o país viveu um quadro recessivo profundo nos anos 1990, que foi uma década trágica a do FHC, e nos anos 2000 com o governo Lula ensaiou-se uma tentativa de adaptação de uma economia que tivesse uma expansão com base no mercado interno, ainda que findada nos valores básicos do neoliberalismo: superavit primário, juros altos, entre várias outras medidas que se mantiveram ao longo dos anos 2000. Mas, nestes anos, tivemos uma onda de crescimento muito expressiva que levou entre 2003 a 2013 a criação de mais de 20 milhões de empregos no Brasil – isso independente da avaliação crítica que se possa fazer ao governo do PT é um resultado que significa, numa época de expansão, você ampliou o nível de emprego expressivamente.
Só que, em 2008, como resultado ainda desse longo processo que se inicia em 1973, a crise chegou. Então o que se passa hoje é que nós temos um novo momento da crise estrutural onde há uma reorganização e uma nova ofensiva das corporações, da burguesia mundializada e dos seus estados imperais, que são também bastante imperialistas, em que a ideia é corroer, dilapidar, devastar o que resta da legislação social protetora do trabalho.
Se essa impulsão global pela precarização do trabalho em escala global é mais intensa no sul do mundo, quando o sul do mundo vive uma expansão econômica, a exploração e a superexploração do trabalho convivem com um crescimento econômico e um maior nível de emprego. Quando a crise se intensifica, nós convivemos com a superexploração do trabalho sendo ampliada para aqueles e aquelas que continuam no trabalho, além do desemprego e subemprego que não param de crescer no mundo todo. Os governos, então, são pressionados pelas transnacionais para fazer mais um patamar de devastação nas condições de trabalho. E é isso faz que esse governo golpista e ilegítimo, um verdadeiro governo terceirizado, esse é o seu papel. Esse pato, essa coisa grotesca da Fiesp que esteve na liderança do golpe, querem, junto com as demais federações do comércio, uma devastação das condições de trabalho.
Por isso, o capitalismo vem acentuando um traço destrutivo em relação ao trabalho, a humanidade e a natureza, que nunca havia assumido em décadas anteriores. Nós estamos na fase mais destrutiva do capitalismo, o que nos obriga a pensar um novo modo de vida. É plausível que nós empurremos todo o século XXI destruindo a humanidade que trabalha, destruindo o ambiente como a Samarco fez em um dos maiores desastres ambientais do mundo? É possível continuarmos produzindo transgênicos? É possível continuar produzindo uma agricultura ou um agronegócio para exportação com base nos pesticidas que aumentam os níveis de chance das populações que se alimentam desses produtos?
Tudo isso vem criando para os movimentos sociais, para os sindicatos de classe, para os partidos de inspiração de esquerda anticapitalista, para os decisivos movimento de periferia, de juventude, negros, comunidades indígenas, aqueles que lutam pela liberdade de exercer sua orientação sexual, seu caminho afetivo do modo que desejam, tudo isso está obrigando a que se reponha o tema do socialismo. Não é possível que nós voltemos a acreditar que a sociedade vai ser destroçada sem respostas.
Agora, é claro que a resposta são também desigualmente combinadas. A América Latina e a Ásia são dois laboratórios muito importantes das lutas sociais de inspiração socialista. Nós não podemos aceitar um modo de vida em que quase 12 milhões de pessoas estão desempregadas no país, quando sabemos que é muito mais do que isso.
Nós temos hoje o processo de luta do “Fora, Temer” que se esparrama pelo Brasil inteiro. Nós haveremos de ter uma miríade social de lutas, de greves e manifestações porque não vão aceitar esse desmonte sem luta. É claro, para concluir, que em um cenário de recessão e desemprego, é mais difícil de lutar, porque você sabe que o risco de perder o emprego é maior, mas também, nesses momentos de crise, é quando os grandes desafios são postos e as alternativas de novos tipos aparecem.
Não é possível que a humanidade veja tanta destruição e não busque alternativas. Por certo, será uma luta socialista muito distinta do que a que vimos no século XIX e XX, de outro tipo, mas que estamos desafiados a exercitar e a visualizar.