Apesar das lições aprendidas com a Lava Jato, com o Golpe de 2016 e, sobretudo, as eleições de 2018 – onde ficou evidente o impacto da escassez de linhas editoriais na grande mídia sobre os processos democráticos -, o presidente Lula sancionou, sem vetos, no último mês, a Lei no 14.812/2024. O texto autoriza que ainda mais emissoras possam ser controladas por cada empresa, ou mesmo por um único dono.
O projeto ampliou as já alarmantes 16 permissões para emissoras de rádio e TV que cada empresa pode controlar para absurdas 40 emissoras.
“O decreto, em seu texto anterior, era flexível e bastante liberal. Ele já facilitava a concentração [de emissoras nas mãos de uma corporação], mas ao menos determinava algum limite. Agora, escancarou de vez”, lamenta Orlando Guilhon, coordenador da Fale Rio, braço fluminense do FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), e quadro histórico do Partido dos Trabalhadores (PT).
“Antes, você poderia ter, se fossem emissoras locais de rádio: 4 AM e 6 FM. Para emissoras de caráter mais regional, poderia ter 3 AM e 3 FM. Agora, cada empresa pode ter até 20 emissoras de rádio FM. Deixar que em uma região uma mesma empresa tenha 20 emissoras de rádio FM não faz nenhum sentido. No caso das TVs, a Rede Globo, por exemplo, tem cinco canais em VHS, os chamados ‘cabeças de rede’. Estão no Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Brasília. Para alcançar todos os estados, ela era obrigada a montar sua rede, fazendo alianças com canais regionais. Agora, não precisa mais: sozinha, pode montar seus canais em 20 estados. Virou uma esculhambação”, destaca Guilhon.
O Projeto de Lei 7/2023 era do deputado Marcos Pereira (Republicanos/SP), bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus e 1º vice-presidente da Câmara dos Deputados. Ele passou pelas comissões de Comunicação, Constituição e Justiça e de Cidadania. Teve 10 sessões para a inclusão de emendas, em março e maio de 2023. A aprovação no Senado aconteceu em 12 de dezembro do mesmo ano, com relatório favorável do senador Eduardo Gomes (PL/TO).
Um absurdo com tramitação tranquila
Tocado em tempo recorde, com amplo apoio da bancada evangélica e forte lobby da ABERT (Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e TV), representante dos empresários do setor, o projeto contrasta com dezenas de outras propostas que seguem engavetadas na comissão de Comunicação da Câmara dos Deputados, como a que busca alterar a lei de rádios comunitárias.
Em entrevista à Fenaj, o presidente da Abraço Brasil (Associação Brasileira de Rádios Comunitárias) expôs o nível da discrepância: ”Para se ter uma ideia da vergonhosa situação, o primeiro projeto de alteração da lei de rádios comunitárias foi protocolado no dia 4 de dezembro de 1998 pelo deputado de direita Arnaldo de Sá, que era um fervoroso defensor das rádios comunitárias. Pois bem, esse deputado já faleceu e esse projeto nunca foi apreciado e apresentado um relatório na antiga Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, hoje apenas Comissão de Comunicação”.
A absoluta inexistência de debate público e resistência por parte dos partidos de esquerda que compõem o governo evidencia que o tema ainda não tem penetração no legislativo e no próprio executivo, apesar de sua relevância e de posicionamentos programáticos.
“A gente entende que o governo Lula não é apenas de esquerda, que ele é composto também por setores liberais e conservadores, mas é impressionante não só a sanção do presidente, mas toda a tramitação, que aconteceu a toque de caixa, passando por bancadas do PT, PCdoB e PSOL, sem que o debate acontecesse, sem contraditório. As próprias bancadas não conseguiram entender o que estava em jogo. A sensação que se tem é que não há debate, não há pressão e que o presidente assina o que mandarem assinar. Se a assessoria mais direta, a Casa Civil, a secretaria de Relações Institucionais, os ministérios mais chegados ao Palácio do Planalto e mais próximos ao presidente não se pronunciam, fica difícil que ele, sozinho, saiba o que é certo ou o que é errado. Para isso têm os ministros e assessorias”, aponta.
As CC tem 6 parlamentares da federação PT-PCdoB-PV e um da federação PSOL-Rede. Já a CCJC tem 10 e dois parlamentares das federações, respectivamente. A única consulta à população aconteceu por enquete no site da Câmara. Deu empate: 40% concordava totalmente ou discordava totalmente. 20% dos votantes estavam indecisos.
Pressão insuficiente
O avanço no sentido contrário de uma mídia nacional mais democrática não passou totalmente despercebido pela sociedade civil. Em dezembro do último ano, o FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação) lançou campanha pedindo que o presidente Lula vetasse o projeto. O Conselho de Participação Social, órgão de assessoria da presidência, também orientou pelo veto. Ambos alertavam que o texto iria, na prática, reduzir ainda mais a pluralidade e a diversidade na mídia. No governo, a Secretaria de Comunicação Social se posicionou, mas não foi escutada. “A Secom chegou a apresentar parecer pelo veto integral do projeto. Fica evidente que nem mesmo um ministro próximo do Planalto está ouvido na hora de agradar o Centrão”, alerta Guilhon.
Em nota, o ministério das Comunicações explicou que o número de outorgas estava de acordo com os princípios da diversidade e livre concorrência. Já a presidência da República apontou em seu site, que, diante da necessidade de migrar pequenas emissoras de rádio de AM para FM, a ampliação se fazia necessária, uma vez que algumas dessas empresas já haviam alcançado o limite de concessões.
Segundo a ABERT, entidade que representa os empresários do setor, o avanço normativo está alinhado com a pauta de valorização do setor, desburocratização e redução de assimetrias regulatórias.
“É uma derrota e um alerta de que nós, enquanto movimento social, não estamos conseguindo encontrar uma interlocução, nem com o executivo, nem com o legislativo. Isso poderia ter tido um outro desfecho se a gente tivesse cobrado das lideranças das bancadas um outro tipo de atuação. Pode ser até que, no final, a gente fosse derrotado por maioria de votos. Eles têm votos suficientes de setores conservadores para aprovar coisas como essa no Senado e na Câmara. Mas, uma coisa é aprovar com disputa, com tensão, com contraditório. Outra coisa é aprovar como se fosse um projeto absolutamente consensual para a sociedade brasileira, quando não é. Quando há muitos anos, setores organizados da sociedade lutam contra e denunciam essa concentração excessiva de mídia”.
Estrago democrático
Em levantamento do Intervozes (Coletivo Brasil de Comunicação), publicado na Carta Capital, sobre a cobertura de TVs abertas dos atos do feriado de 7 de setembro de 2022, é possível ver, em cores vivas, a dimensão do problema. O Jornal Nacional, da TV Globo, denunciou o uso eleitoral das comemorações do Bicentenário da Independência. No SBT, uma matéria cobriu a 28ª edição do Grito dos Excluídos, organizado pelos movimentos sociais para denunciar desigualdades e silenciamentos de grupos oprimidos.
Já na Record, do bispo Edir Macedo, dono da mesma igreja que tem o deputado Marcos Pereira como bispo, os atos não chegaram a virar notícia. Todo o foco foi direcionado aos atos cívico-militares, considerados pela emissora “um dia de festa”. Segundo o Intervozes, as entrevistas traziam falas de, em sua maioria, mulheres. Pesquisas da época apontavam que era este o grupo onde Bolsonaro precisava angariar votos e reduzir sua rejeição para o pleito eleitoral que se aproximava.
Antes da sanção presidencial de 15 de janeiro, o Brasil já estava à frente de países como os Estados Unidos, cuja legislação impõe diversos limites para a concentração de emissoras, considerando, inclusive, os seus alcances territoriais e de audiência. Por aqui, o cenário que já era de pouca ou nenhuma diversidade de olhares, produções locais, linhas editoriais e controle de narrativas sociais e políticas – um perigo potencial para a própria democracia – se agrava.
Em entrevista ao programa Soberania em Debate, no início de dezembro, o professor Michel Gherman, do programa de Pós-Graduação em História Social (PPGHIS) da UFRJ, destacou o engano em minimizar o papel da mídia hegemônica na construção do imaginário fascista que alimentou – e alimenta – o projeto bolsonarista de poder e destruição nacional. “É um grande engano atribuir às redes sociais o letramento sofisticado que a grande mídia produziu por anos, com uma comunicação empobrecida, cruel, rústica, sem metáforas, que criou as bases de uma gramática fascista que a esquerda demorou para identificar e combater”, destacou Gherman.
Curta janela de oportunidade
A pressão por uma mídia plural e descentralizada segue, organizada em iniciativas sociais como a Fale Rio, braço do FNDC no Rio de Janeiro, integrado pelo Senge RJ e dezenas de movimentos, sindicatos, rádios e TVs comunitárias, jornais e portais populares, associações e institutos.
Entre a sanção da lei e a compra de TVs e rádios locais pelas grandes corporações de mídia, há uma janela de oportunidade até que esse enfrentamento fique ainda mais difícil. Segundo Guilhon, o caminho será buscar os juristas, especialistas em direito constitucional, e procurar uma saída.
O coordenador da Fale Rio tem como base a Constituição Federal. O artigo 220 da Carta Magna estabelece que os meios de comunicação não podem ser, em nenhuma circunstância, objeto de nenhum tipo de monopólio e oligopólio.
“O que essa lei fez foi rasgar a Constituição. Se antes existia um oligopólio disfarçado, agora se sancionou a legalidade da concentração midiática cada vez maior. E são as redes evangélicas, privadas que crescem, em detrimento de redes públicas, estatais poderem ter alguma força de mercado e audiência. Agora, um projeto que passeou sem contestação da apresentação à sanção dificilmente vai ser objeto de ação no STF. Como o STf vai se sentir à vontade de decretar inconstitucional algo que foi aprovado por todos os partidos? Isso pode criar um incidente entre os poderes, inclusive. Nos deixa em uma situação muito complicada”, analisa.
Outro caminho possível seria a regulamentação dos artigos 220 a 224 da Constituição. “Temos que voltar ao debate sobre a regulação da mídia. Acho que, de forma correta, estão priorizando a regulação das plataformas digitais, a questão das fake news. Pela gravidade da situação, até acho que é mesmo prioritário. Mas não podemos cair nesse engodo de achar que rádios e TVs são menos importantes. Em algumas áreas do Brasil, quanto mais você vai para o interior, as rádios ainda têm uma importância muito grande. O mesmo acontece com a TV: nem tudo está nas redes, nem tudo é internet. Há uma diversificação, com a TV aberta, as TVs por assinatura, uma pluralidade de opções, mas que ainda estão muito concentradas. Se a gente ficar focado só nas plataformas digitais, cometeremos um erro político grave”, alertou.
Por ora, fica o que Guilhon chamou de “amargor na boca”. Amante do futebol, ele resumiu a questão em uma analogia incômoda: “Houve um jogo. A direita jogou com 11 titulares. O juiz, parece, era comprado. Foi até ele mesmo que bateu o pênalti. Já o nosso time, ficou no vestiário, discutindo a cor da camisa”.
Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ
com informações do Brasil de Fato, Fenaj, Intervozes e Agência Brasil
Foto: Ricardo Stuckert/PR; FNDC, Fenaj – Reprodução Instagram e Joédson Alves- Ag. Brasil