São poucos os consensos em um mundo polarizado. O papel fundamental da produção científica para o desenvolvimento sustentável e o reposicionamento de qualquer país no tabuleiro geopolítico após a terceira revolução industrial, é um deles. Ainda que reconheça isso, o governo brasileiro ainda não conseguiu recuperar os anos de desvalorização e abandono da produção científica nacional.
No Brasil, pesquisa e inovação são majoritariamente produzidas nos laboratórios e salas das universidades públicas. Por isso, o papel de pesquisadores em programas de pós-graduação – mestrandos, doutorandos e pós-doutorandos – é central para que o Brasil deixe de ser um país exportador de commodities e passe a produzir e exportar produtos de alto valor agregado, com reflexos positivos para toda a sociedade.
Embora seja indiscutível que o desempenho do trabalho de docentes e discentes é, e seguirá sendo, em grande parte responsável pelo quanto conseguiremos avançar no enfrentamento aos desafios impostos pela urgente reindustrialização do país, suas condições de trabalho seguem longe de corresponder à importância e responsabilidade que carregam.
Salários nada competitivos para professores, infraestrutura precária e bolsas defasadas desafiam os planos do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC) para o Nova Indústria Brasil, projeto do governo Lula 3 que tem como objetivo atrelar a reindustrialização do país com seu enorme potencial científico, amplamente reconhecido em todo o mundo.
Muitos deveres, poucos direitos
Se estivesse no LinkedIn, a vaga seria criticada: trabalho com exclusividade, salário baixo, férias a combinar. Prazos apertados e infraestrutura precária em uma das áreas que mais adoecem seus trabalhadores. O cientista brasileiro, mesmo sendo um profissional altamente qualificado e frequentemente atuando para empresas privadas, é uma das poucas categorias sem direitos trabalhistas. O resultado óbvio é a assustadora fuga de cérebros que marca a comunidade científica nacional. Perdemos, aos poucos, o bem mais precioso do país, valorizado no exterior e precarizado no Brasil.
“Pesquisadores enfrentam uma situação muito precarizada. Nosso trabalho tem um caráter híbrido, de dupla jornada estudante-trabalhador. Os engenheiros que seguem pela pós-graduação geralmente são contratados para trabalhar em projetos de empresas privadas, mas com remuneração muito abaixo do piso legal da engenharia. Ao mesmo tempo, enquanto trabalhamos, temos que nos dedicar a relatórios e estudos para as dissertações e teses. Tudo isso sem qualquer direito trabalhista ou previdenciário”, destaca Douglas Fortunato, doutorando em Engenharia Metalúrgica e de Materiais pela COPPE-UFRJ e militante do MTST.
Douglas integra a luta dos pós-graduandos pela valorização da ciência e dos pesquisadores brasileiros: ele é secretário Geral da Associação de Pós-Graduandos da UFRJ, uma das entidades estudantis/profissionais que, juntas, compõem a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG). As APGs lutam pelos direitos dos pós-graduandos à seguridade social desde os anos 1980, buscando superar o preconceito associado à condição híbrida de estudante-trabalhador e seus reflexos na negação de direitos como férias, décimo terceiro, auxílio-doença, pensão por morte, salário-maternidade e aposentadoria por contribuição.
“Pesquisa é trabalho. Estamos na luta para que isso seja reconhecido e pelos nossos direitos previdenciários. Um trabalhador da ciência que fica dois anos no mestrado e quatro anos no doutorado, não tem esse tempo contado na previdência social. Perceba que, embora exerçamos a função como trabalhadores, não temos acesso a direitos. Precisamos desmentir a falácia de que o pesquisador só estuda. Nós produzimos tecnologia, inovação, o motor do desenvolvimento. São matérias, artigos, teses, dissertações, extensões universitárias que têm impacto direto na vida do país”, destaca Matheus Avila, mestre e doutorando em economia pela Universidade Federal de Uberlândia e diretor de Extensão e Territórios da ANPG.
Bolsas reajustadas, ainda defasadas
A luta dos pesquisadores não é nova e passou por um período crítico nos últimos anos. Com a ciência como alvo preferencial durante o governo fascista de Bolsonaro, professores e pesquisadores eram considerados – e tratados como – inimigos do Estado. Foram os últimos quatro anos de uma década de bolsas sem reajustes e de cortes profundos nos investimentos em ciência no Brasil.
“Nós enfrentamos uma conjuntura nos últimos seis a oito anos extremamente hostil à ciência, à pesquisa e à educação. Ficamos 10 anos sem o reajuste das bolsas de pós-graduação. Avançou também o negacionismo científico e o abandono ao que é produzido de ciência e tecnologia no país. A ciência foi muito atacada. E atacar a pesquisa, a ciência, é atacar o combate aos níveis de desigualdade no país”, aponta Matheus.
A eleição do presidente Lula para um terceiro mandato trouxe um sopro de esperança para a ciência nacional: através da PEC da Transição, já em fevereiro do primeiro ano da gestão PTista, houve um reajuste de 40% nas bolsas. As bolsas de mestrado subiram de R$ 1.500 para R$ 2.100 e as de doutorado passaram de R$ 2.100,00 para R$ 3.100,00. “Há um ensaio à valorização dos pós-graduandos, dos cientistas, dos jovens pesquisadores do nosso país, mas constatamos que o valor reajustado não contempla o que foi perdido nos últimos anos”, aponta Matheus.
O Guia do Reajuste (clique aqui ou na imagem da publicação para baixar), produzido em 2024 pela ANPG, mostra que os valores atuais, quando considerados os dez anos sem reajuste, perderam um pouco mais de um terço do seu valor em relação ao poder de consumo. De 2013 a 2024, a defasagem registrada é de 80%. Apenas com a correção inflacionária, as bolsas de mestrado deveriam ser de R$ 2.845,00 e as de doutorado, R$ 4.833,00.
Organização e o engajamento
A luta por bolsas dignas não terminou com o reajuste concedido em 2023. Hoje, os pós-graduandos lutam por um mecanismo institucionalizado de reajustes anuais vinculado ao salário mínimo ou indexado pela inflação. “Neste momento, precisamos de um reajuste de 10% e a ampliação de cinco mil bolsas. Já protocolamos uma emenda na Câmara dos Deputados que, caso seja aprovada, teremos a verba garantida: apenas R$ 800 milhões para garantir o reajuste aos bolsistas e a ampliação do número de bolsas”.
A articulação pelas pautas imediatas e de longo prazo vêm acontecendo em Brasília, enquanto os pesquisadores seguem organizados nas APGs espalhadas pelo país. “Mobilizar os pós-graduandos não é fácil. Eles trabalham e são mal remunerados w sobreviver já toma todo o tempo. Mas seguimos mobilizando porque sobreviver não basta. A gente merece viver com dignidade”, defende Matheus. Douglas concorda: “Só a luta organizada nos dá alguma perspectiva para o avanço no acesso aos nossos direitos. É desafiador, mas há esperança”, finaliza Douglas.
Texto: Rodrigo Mariano/Senge RJ | Imagens e gráficos: ANPG/Reprodução